25/1 - Descoberta

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  • Dedicado a Ramon Chaves
                                    

Música: Owl City - Fireflies

Descoberta

Era o ano de 1996, algum dia de fevereiro, provavelmente. No meio de quarenta crianças era facil identificá-la. Pele clara, olhos verdes e cabelos longos e loiros presos firmemente em uma trança, quase não conseguia permanecer sentada. Ficava pulando em sua carteira olhando para todos os lados, como se os olhos estivessem famintos e precisasse alimentar-se das pessoas, cores, paredes ao redor. Era tudo muito novo.

Aquela que seria seu modelo de inspiração entrou na sala. Cabelos curtos, pretos e cheio de cachos. O rosto era pálido, com algumas olheiras e olhos claros como agua. Pediu silencio. 
Usava um avental com o nome bordado no peito, acima dele o titulo tão cobiçado e que a inebriava de expectativas: Professora.

Rapidamente ela entendeu que precisaria se empenhar muito para trocar o uniforme de algodão cinza por um daqueles aventais. Bordado. Era necessário ser bordado, com o titulo, Professora, acima do nome, imponente e brilhante. Nome e sobrenome aliás. Ela gostava do som dos dois juntos.

A Professora, que chamava-se Tânia, estava absorta na função de conhecer seus alunos. Pediu a cada um: nome, idade e o que mais gostava de fazer. Todos respondiam com certo sono. Ela não, estava desperta como sempre. Esperando sempre mais. Sentimento que a acompanhou para sempre. Ela sempre estava atenta e a espera daquele instante que pode transformar qualquer rotina em algo surpreendente, como a Emília, do Sitio do Pica-Pau Amarelo, livro que ela havia conseguido ler antes de entrar na escola.

Começou a ler muito cedo, com jornais no colo do pai. O tempo levou embora os jornais e eventualmente, o pai, mas a leitura ficou e fincou em seu coração e alma como semente boa que encontra solo fertil e espaçoso. Semente que ela regou e cuidou com esmero, sentada na biblioteca da escola. 

A bibliotecaria, uma senhora negra de cabelos brancos que mais pareciam nuvens macias não gostou da presença dela no primeiro momento. Talvez pensava que aquela menina era apenas mais uma a querer fazer bagunça nas suas estantes. Não poderia estar mais errada e deve ter reconhecido seu erro nos primeiros cinco minutos em que a menina esteve ali.

Seu olhar de pura adoração e encanto para as prateleiras cheias de livros. Os olhos quase não enxergavam aqueles pequenos livros cheios de figuras e disputadissimos. Não, desde cedo ela tinha a mania de olhar para as prateleiras acima dos seus olhos. As capas diferentes, os maiores volumes, os mais antigos. E foi assim, que havia descoberto a primeira coleção que iria ler, do autor: Monteiro Lobato.

Nunca esqueceria a porta que havia aberto em sua alma, porta que a transportava para o mundo incrivel das Reinações de Narizinho e Visconde de Sabugosa, mesmo no meio do caos e gritos dentro de casa. Ela havia descoberto seu bem mais precioso. 

Voltamos à sala de aula. Ela estava esperando sua vez e impaciente, não deu tempo nem da professora sorrir à aluna da ultima carteira da fileira anterior, ela levantou e disse em alto e bom som: Ruth Faraga, 06 anos e eu gosto de ler. Risadas veladas.
A professora pergunta: E qual sua brincadeira favorita? Ela olha como se não entendesse e responde, mais uma vez: Ler. 
A professora sorri para ela gentilmente e pergunta: Qual histórinha você mais gosta?
Ela responde animada: Estou terminando Reinações de Narizinho!
A professora parece confusa, mas sorri e acena para o proximo aluno. A pequena senta meio cabisbaixa sem entender direito o que se passou. De certo a professora não entendia, que aquela atmosfera de brincadeiras na rua e na casa de amiguinhos e vizinhos. As conversas com doces e guloseimas, ou sobre os desenhos animados. Nada disso fazia muito parte da vida dela.

Ela já olhava carros naquela idade, com os irmãos. Conseguindo trocados para ajudar na casa. Ela, que desde o jardim de infancia, teve de aprender a ir e voltar sozinha para a casa, com ainda seis anos. Ela era grande, desproporcionalmente grande para seu pequeno corpo e sua pouca idade. 

Na primeira aula, ficou desapontada, a professora ensinava as primeiras letras e silabas as outras crianças e ela estava pensando: Mas, ninguem aprendeu isso em casa? 
Ela já escrevia o nome e lia, ainda lentamente, mas em grandes quantidades. Terminou a lição em menos de 15 minutos e ficou entediada olhando para o nada. Olhava para os lados ao ver que as outras crianças estavam cometendo erros. Aguentou por dez minutos e levantou da carteira sentando ao lado da menina chamada Angela. 

Angela olhou para ela perguntando porque ela estava incomodando e com um suspiro dramatico, a pequena menina de tranças loiras começou a ajudá-la a entender as sílabas. A professora ficou encarando as duas garotas e quando seu olhar cruzou com a impaciente menina, sorriu. 

No recreio, ela foi correndo para a biblioteca. Perguntou para a Dona Rosa, que cuidava daquela sala que era pequena por fora e mesmo assim guardava tantos mundo por dentro com seus cabelos de nuvens: Qual a melhor escola para se tornar Professora?

Dona Rosa sorriu e respondeu: USP. E é uma faculdade. 

Na segunda aula, a Professora Tania elogiou os esforços de todos os alunos para aprender as sílabas e disse que como recompensa eles poderiam fazer um desenho que representassem o que eles queriam ser quando crescer. 

Não houve um segundo de duvida. A pequena Ruth pegou a folha de sulfite, o lapis e escreveu de maneira forte e segura o que queria: Estudar na USP, ser Professora e Escrever Livros.

Até hoje eu fico pensando, se a Professora Tânia sorriu ao ver aquele desenho.

Um agradecimento especial para o Ramon Chaves, que me deu um voto de confiança e indicação. O primeiro passo para viver um grande sonho meu. 

Teorias do Imaginário #Wattys2016Onde histórias criam vida. Descubra agora