Capítulo VI

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Entrei, desajeitada e sonolenta na livraria e esfreguei os olhos ao mesmo tempo em que meus ouvidos captaram o som do familiar sininho que ficava acima da porta. Respirei fundo e senti o leve cheiro de menta e canela no ar, franzi o cenho, o Sr. Donahue devia ter comprado outro aromatizante para a livraria, o que não é nada surpreendedor, visto que o gosto do senhor de idade é mais alternativo que meu humor.
"Bom dia, Sr. Donahue." Digo quando o vejo do outro lado, familiarmente, de seu balcão de atendimento. Ele, por sua vez, arregala os olhos em minha direção e checa o relógio de pulso dourado.
"Por Deus, Olyn, são seis horas!" Sorrio.
"E daí?"
"Você só chega depois das dez." Coloco um copo de capuchinho e um saquinho cheio de bolinhos na sua frente. O Sr. Donahue olha para o café da manhã grátis e depois para mim. "Ah, esqueça o que eu disse." Diz e começa a atacar os bolinhos, soltando um suspiro deliciado que apenas os senhores conseguem.
Felizmente ele estava ocupado demais com a comida para me olhar melhor; pois, se assim fizesse, perceberia as sombras escuras e enormes sob meus olhos cansados e pálpebras pesadas que não sumiram mesmo após três xícaras de café. Talvez a cafeína ainda não tenha feito totalmente o efeito devido, mas eu já sentia os primeiros sinais de tremedeira na mão e uma energia começar a surgir dentro de mim.
O motivo de meu surto desejoso em café, foi pelo simples fato de eu não ter fechado os olhos um minuto sequer noite passada. Estava ocupada demais tentando deixar minhas mãos traidoras longe da segunda carta que eu decidi, bondosamente e para a infelicidade de minha curiosidade, não ler. Agora eu era apenas uma zumbi ambulante vagando pelas ruas de New York drogada em demasia cafeína. Eu estava prestes a perguntar ao Sr. Donahue o que ele queria exatamente que eu fizesse hoje. Ele é, sem dúvidas, um senhor bem excêntrico; não uma tarefa fixa aqui, na livraria, mas eu diria que sou uma faz tudo. As vezes eu varro o chão, limpo as prateleiras, tiro a poeira dos livros, organizo tudo... Mas, a verdade é que eu adoro o meu trabalho livre aqui, principalmente o meu desconto nos livros e um espaço exclusivo que tenho no final do corredor no chão cheio de almofadas para ler o que quiser quando estou sem fazer nada.
Pelo o que o Sr. Donahue diz, ele já passou dos oitenta anos, então é mais do que óbvio, para qualquer um que passasse na livraria, que o ele não faz muita coisa a não ser tirar um cochilo entre clintes e mais clientes. Felizmente, a livraria dele sempre fez um sucesso estrondoso, e o fato de eu gostar de ficar rodeada por livros quase que vinte e quatro horas por dia me dá uma vantagem. A livraria fica a apenas algumas quadras do Linds James, e quando eu apareci pela vigésima vez para comprar o vigésimo livro no primeiro mês de abertura da loja, o Sr. Donahue me olhou e, deve ter pensado em sua artrite, idade avançada e por fim: Por quê não? E assim, magicamente, fui contratada, e nunca me senti tão feliz por ter um emprego que eu realmente gostasse.
Saindo de minha linha de pensamento, abri a boca para interrogá-lo quando o mesmo me interrompeu:
"O que você faz aqui mesmo?" Oh, não. Eu esperava que eu não tivesse de botar amnésia na lista da saúde de Sr. Donahue tão cedo.
"Perdão?"
"Você não estava de folga?" Dei uma risada e quase coloquei a mão no peito de tanto alívio. Ele ainda estava são.
"Sim, Sr. Donahue, mas eram apenas dois dias." Ele negou com a cabeça, fervorosamente.
"Não. Eram três dias." Disse ele e colocou três dedos quase colados na minha cara para enfatizar. "Três." Estreitei os olhos. Bom, um de nós estava prestes a ficar doido de vez. Como eu poderia ter me confundindo com isso, não chega ao meu grau de raciocínio. Gesticulei a mão para dizer que não importava. Mas ele disse exaltado: "É claro que importa! Não quero que entrem aqui e vejam um velho indefeso com uma ajudante com a aparência de uma moribunda." Então ele percebera minha aparência. Ah.
"Qual será a diferença se me verem... assim?" Ele me olhou com um sorrisinho.
"Tenho de lembrar a você o dia em que colocou aquele bandido para correr o sufocando por trás?" Antes que eu pudesse fazer uma careta ou dizer qualquer coisa, o Sr. Donahue já estava se sacudindo de tanto rir. "Foi o melhor dia de minha vida." Concluiu limpando uma lágrima que descia pela sua bochecha enrugada.
"O dia em que colocaram uma arma na sua cara, senhor?"
"Não. Você quase ter matado o homem!" Ele riu mais.
"Eu só fez aquilo porque eu sabia que era uma arma falsa." Ele ficou sério e me encarou. "Tudo bem, talvez não soubesse que era de fato falsa, mas..."
"Basta! Vá para casa, agora! Volte amanhã." Suspiro e estou prestes a ir embora quando ele coloca a mão, que não está segurando três bolinhos ao mesmo tempo, em meu ombro. "Espere. Pode organizar os livros da prateiria 3? Um sujeito atrapalhado os derrubou ainda agora." Franzi o cenho ao me encaminhar para o local vandalizado.
"Clientes tão cedo?" Encarei a bagunça. Ele tinha feito o favor de ter colocado os livros na prateira, mas não os colocou em ordem alfabética, e sim pelas cores e tamanhos. Eu particularmente também prefiro assim, mas deixa o Sr. Donahue doido.
"Um livro que ele queria muito ia chegar hoje. Ele é maluco como você. Lembra-se da vez que você madrugou do lado de fora, ansiosa por uma nova publicação?" Dei uma risadinha. É difícil esquecer quando essa coisa ocorreu três vezes. "Ele fez o mesmo. Doido de pedra."
"Eu acho que o mundo precisa de mais pessoas assim." O Sr. Donahue esconde um sorriso antes de dizer:
"Se o mundo tivesse mais de uma Caloryn, não existiria uma alma viva sequer."
"Existiria, sim. Eu."
Mas o ele apenas balançou a cabeça e voltou a atenção para os bolinhos.
"Você ainda daria um jeito de se matar sem querer."
Saí da livraria, minutos depois, com meu próximo destino adiantado. Eu sempre fui a pé para a livraria, mas não me sentia confortável andando sozinha tão cedo, então optei pelo meu carro hoje. Além do mais, assim que eu saísse do trabalho eu teria de ir à um lugar que nem nos infernos eu iria andando. Sentindo novas energias e excitação, peguei a estrada para a segunda parada do dia.

Cartas Para Alex : O Litoral Do Sol PoenteOnde histórias criam vida. Descubra agora