Capítulo IX

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Eis duas coisas que eu sei sobre o famigerado universo: É pedir demais um dia de paz. E, com toda a certeza do mundo, você fica parecendo um ser pertubado da cabeça quando pede, mentalmente, que um buraco negro se abra sob você, a engula e depois a cuspa no espaço, bem longe da terra e dos seus problemas mundanos. Era este último pensamento que eu estava pedindo, em vão, desde o momento em que entrei no apartamento de Jane, esperando um ataque físico que não veio; pois, pelo que ela me disse, Dave havia decidido ir dar uma passada no hospital. Como esperado, meu pedido de desaparecimento súbito não foi atendido.
Agora, eu estava no sofá de Jane, encarando as próprias mãos, enquanto minha mente pensava no lado bom de tudo aquilo. Se é que existia um lado bom. Pelo menos Dave foi direto para o hospital, e não para a delecia.
"Então, o que tem a dizer?" Jane estava em pé na minha frente, não olhei para ela. Pelo menos ele não quebrou nada. E não tinha uma mancha de sangue a vista. Mas será que Jane limpou, se havia? Não, ela não limparia. Mas de qualquer forma, as pessoas não sangram quando um osso se quebra... ou sangram?
"...ainda não entendi o que você queria com aquilo e..." Eu estava olhando para os pés de Jane que andavam à minha frente. Não, as pessoas decididamente não sangram ao quebrar um osso, exceto se o osso atravessasse a pele. Fiz uma careta, isso não deveria ser muito agradável.
"Você é lésbica?" Isso chamou minha atenção. Olhei na cara de Jane perplexa e arregalei os olhos.
"O quê?"
"Você veio aqui. Fantasiada de urso gigante, se ajoelhou na minha porta e..."
"Jane, eu não sou lésbica e não estou apaixonada por você." Fiz uma careta breve, mas ela percebeu.
"Por que o fato de estar apaixonada por mim parece mais um insulto do que ser lésbica?" Inclinei minha cabeça para o lado.
"Ser lésbica não é um insulto para mim, não sou e ponto de exclamação. Mas sinceramente, você também não faz o meu tipo." Desviei o olhar, não queria ouvir a opinião de Jane sobre nada. "Por que estamos falando disso mesmo?"
"Por que você fez aquilo? Alguém te enviou aqui?" Eu a encarei e fiquei em silêncio. "Alguém mandou você aqui." Não foi uma pegunta. "Quem?" Exigiu. Não respondi. Como poderia? Jane suspirou e me encarou friamente.
"Achei que éramos amigas. Parece que eu estava enganada."
"Somos amigas." Murmuro. Mas será que era mesmo a verdade? Eu só comecei a falar com Jane por causa das ondas e nuvens de Mathew, sem ele, não acho que teríamos sequer começado uma conversa. Eu era apenas a informante dele. Fiz uma careta, isso me fez horrível por dentro. Minha consciência pesou um pouco.
"Amigas não escondem nada uma da outra." Ela falou, momentos depois.
"Jane..."
"Não. Não fale nada. É melhor você ir, de uma vez." Ela andou a passos lentos mas decididos até a porta e a abriu. Escutamos uma série de xingamentos quando Matt, Jacob e Barry caíram de cara no chão, fazendo uma uma pilha de corpos irritadiça.
"Maldição!" Barry exclamou no chão. "Minhas costas." Ele se calou quando viu a expressão de Jane. Os três se levantaram, assim como eu. Estávamos prestes a sair quando Matt disse:
"Foi eu." Me virei para ele, mas ele estava olhando Jane. "Eu mandei as orquídeas. Eu mandei Olyn fazer tudo isso, eu... eu fiz tudo isso porque eu gosto de você, Jane. De verdade. Muito mesmo. Gosto tanto de você que eu quis jogar Dave da janela na primeira vez que eu o vi tocando em você. Sou seu admirador secreto, perdidamente apaixonado." Barry fez o favor de fechar a minha boca e a de Jacob quando Matt parou de falar. Eu encarava Matt e Jane freneticamente, esperando a resposta dela, assim como Matt. Ele estava com um olhar decidido e determinado no rosto, encarando Jane com intensidade.
"Eu..." Ela balbucidou, claramente espantada; Matt nunca havia demonstrado um sentimento sequer por ela, pelo menos, não um que ela pudesse notar. Só o via como o melhor amigo de uma amiga, nada mais.
"Apenas diga se irá valer a pena eu lutar por você. Não uma luta física, é claro, eu iria sair aleijado. Se você achar que valerá a pena, eu vou lutar. Se não, deixo você como está." Mordi o lábio inferior com força, mais nervosa que Matt aparentava estar. Um minuto se passou antes de Jane suspirar e dizer:
"Sinto muito, Matt. Eu já encontrei minha pessoa." Um silêncio pesado se fez depois disso. Matt assentiu e vi a sombra de um sorriso no canto de seus lábios, mas mágoa e dor jaziam em seus olhos que eu tanto aprendi a adorar nesses anos.
"Eu espero que você seja feliz. Adeus, Jane." E saiu. Não olhei na cara de Jane, talvez eu perdesse todo o meu autocontrole e fizesse com ela a mesma coisa que ela me fez quando corri para longe de Dave mais cedo. Quando sai no corredor, a única coisa que eu queria era pular na sua costa e bater em sua cabeça.
Mathew estava andando a passos largos até o elevador, enquanto eu, Barry e Jacob tentávamos segui-lo. Com um clima tenso e melancólico nos rodeando pesadamente. Olhei para o chão e no mesmo segundo peguei o skate, Sam deve tê-lo esquecido no meio daquela bagunça. Eu corri para o elevador, onde Matt estava.
"Matt, espere..." Mas o elevador se fechou na minha cara, a última coisa que vi foi um Matt emburrado antes de me deparar com meu reflexo. "Ótimo. Por quê vocês não entraram?" Me virei para Barry e Jacob, que me encaravam, ao lado do elevador.
"Nós tentamos." Jacob falou. "Mas ele rosnou para nós. Rosnou! Consegue imaginar uma coisa dessas?"
Eu conseguia perfeitamente.
"Ele acabou de ser recusado romanticamente, Jacob. Não seja tapado."
"Eu também já fui recusado romanticamente. Nem por isso rosnei como um cachorro raivoso." Barry encarou Jacob e franziu o cenho. "Você ouviu mesmo um rosnado? Eu jurava que ele havia feito o barulho de um pato."
"Vocês não deveriam estar na recepção?" Resmungo quando o elevador se abre novamente para nós. Entramos e eu apertei o botão do meu andar. "Sabe, fazendo o que recepcionistas fazem."
"Deveríamos." Jacob disse, apenas, e ficamos em silêncio. Cruzei os braços e inclinei minha cabeça para o lado. Agora Matt devia estar em seu apartamento, possivelmente batendo em alguma coisa, para suprimir toda aquela energia bruta que devia estar enraizada nele até o talo. Suspiro. Quando Matt dorme com raiva, ele acorda com raiva, e quando ele acorda com raiva ele fica triste, e depois fica com mais raiva ainda por ficar triste e acordar com raiva. Como eu não gosto desse processo de maneira alguma, estava tentando pensar em alguma coisa que me ajudasse a melhorar seu humor quando... minha cabeça parou de se inclinar. Sorri e me virei para Jacob.
"Eu tenho uma ideia. Mas vou precisar de você." Ele franziu o cenho e estava prestes a fazer uma careta quando eu disse: "Ajudar Matt." Ele não teria como contestar aquilo. E expliquei meu plano para eles. Saí do elevador segundos depois e eles foram para o térreo. Corri até o apartamento de Matt e parei no lugar quando vi quem estava parado na minha porta. Reprimi uma careta e me aproximei, relutante, do sujeito.
"Pode me dizer o por quê de o seu melhor amigo ter acabado de passar por mim dizendo que se eu não saísse da frente dele rapidamente, ele iria me estrangular até a morte?" Josh perguntou com um sorriso tranquilo que não combinava com a situação, mas não deixava de ser deslumbrante, e com as mãos nos bolsos.
"Longa história que irei resolver agora." Parei a uma distância segura dele. Enviando uma rápida mensagem apenas com o olhar: O que você quer? Josh arqueou a sobrancelha para mim, mas demorou para falar.
"Eu queria saber se você... quer... ahn..." Eu nunca havia visto Josh gaguejar, foi uma experiência agradável, mas eu queria ir ver Matt imediatamente, que talvez estivesse prestes a explodir a alguns metros de nós.
"Sair com você?" Sugeri e ele sorriu, agradecido, para mim. "Não é uma boa ideia, Josh." Seu sorriso se esvaiu no mesmo segundo. "Sinto muito, eu preciso ir..." Mas antes que eu pudesse me afastar, Josh segurou meu pulso.
"Não como um casal... eu... eu queria saber se podemos ser amigos." O encarei por alguns segundos. "Estamos juntos a tanto tempo, Olyn. Você me conhece e eu conheço você. Está na cara que não demos certo como um casal. E não precisa fazer essa cara porque eu já sei que a culpa é toda minha. Mas eu preciso saber que tenho pelo menos a amizade de uma pessoa em que sei que posso contar..." Ele olhou para o chão e encarei seus olhos marejados. Josh não tinha contato com a família a muito tempo, e seus amigos eram escassos. Como ele dizia: Eu era a única coisa fixa que ele tinha. Mas agora, ele me perdeu. Mas e se, só tivesse me perdido como uma namorada, afinal de contas?
Dei um sorrisinho para ele e a expressão de mágoa de Josh foi substituída por alívio. Amigos. Eu não teria problemas com isso.
"Pode contar comigo, Josh. Sempre." Apertei a mão dele e me afastei. As palavras de Josh brincaram em minha mente. "Você me conhece e eu conheço você." Ah, eu o conhecia, demais até para o meu próprio bem. Mas Josh não me conhecia completamente, não sabia o que havia no interior daquela garota de New York. E a verdade da minha vida, a verdade assustadora mas tranquilizante, era que ninguém o fazia.

Cartas Para Alex : O Litoral Do Sol PoenteOnde histórias criam vida. Descubra agora