Restaram-me somente os vestígios fúnebres de uma vida sociável. Sobraram as corujas gritando na minha janela, as notificações apitando debaixo do cobertor, e a tristeza sombria de uma residência insólita.
Sob o véu pretensioso da virtualização da vida, recolho-me, mas ainda sim mantenho a dependência desses aparelhos de controle de comportamento. Publico algo. Curto algo. Compartilho algo. Discuto e disserto. Crio. Analiso superficialmente e formulo teorias. Estudo.
Mas nada aparentemente importa, por alguns segundos .
E parece-me satisfatório. Até descobrir as sequelas de um pensamento vivo desde os tempos gregos. A capacidade de entender os processos cotidianamente difundidos até nós.
Formulei um personagem digital perfeito. Infalível, incançável e livre de angústias destrutoras. De gostos peculiares, representante fiel de quaisquer que sejam as ideias.
Só que essa máscara desfaz-se quando, após as sombras domarem os céus, analiso a realidade cruel tirânica caucada no volátil movimento de manifestação em todos os campos da sociedade.
Se por um lado, os indivíduos vivem na liquidez da modernidade, ressalto que, talvez tenhamos passado desse aspecto para uma nova consequência ainda mais lúgubre. Uma maldição provocada pelo demônio o qual ajudou a enterrar a razão e derrotou os muros dos limites impostos pelas luzes ocidentais.
Seu nome era existencialista. Exalava o odor das crises que hoje assolam a geração pós-moderna e culminavam em relações fantasiosas capazes de derrocar o centro racional. Este, substituído pela crendice atroz relativista e perspectivista, sugou a vitalidade e pôs em xeque o exilir sagrado do que é, de certa forma, lógico.
Se nada dura. Se tudo é capaz de morrer e se transformar, não deve ter sequer alguma base. Saliento a metáfora do lago congelado para, pela primeira vez, tentar revelar que o gelo já quebrou-se, e dele surgiram circunstâncias maléficas, vertiginosas, sutis e depreciativas.
Processos desastrosos. Agem como olhos vigilantes do ser, que nem ele percebe. Será que, no fim, nada realmente valeu a pena?
A verdade é que nada saiu desse século. O ciberespaço invadiu demais a vida das pessoas e as fez com medo. Inseguras. Evasivas.
Meu contato pessoal foi reduzido a 1%. Meus animais ainda gostam de mim o bastante, mas eu? Não tenho tanta certeza...
Faz meses desde que derramei a última lágrima. Minha rotina regrada tornou-me mecânico. Lá fora, sequer piso totalmente. Possuo contatos virtuais. 99%. Porém, eles não suprem o que preciso. São imprecisos. Rápidos. Sem conteúdo. Muito passíveis ao erro.
Meus amigos foram embora. Meus momentos felizes se esvaíram como penas. As festas são uma coisa externa aos meus objetivos. Meu aniversário é uma grande tragédia com comida e velas derretidas. Convidados frios. Sem ânimo. Sem zelo. Sem nada. Retomo de tempos em tempos uma oração religiosa qualquer que tente agradar a alguma força motriz, mas não consigo acreditar em algo metafísico o bastante para dar crédito. Os jogos tornaram-se chatos. Os filmes e séries entediantes. As pessoas ficaram de lado, pois são vazias.
E pego-me cético. Contudo, essa crise não deve durar, assim como o mundo do século XXI.
Vivemos na sociedade da descrença.
Das pessoas.
Dos relacionamentos.
Da religião.
Do trabalho.
Da felicidade.
Dos valores.
Da razão.As instituições nunca estiveram tão fracas. As pessoas nunca estiveram tão artificiais e desinteressantes. Tudo é muito chato.
Até existem mais de 52 gêneros, começaram a dizer por aí... Mais de cinco sexualidades também e sei lá. Só que nenhum deles importa.
Muitas opções me desmotivam. Fazem com que tudo seja passível de aprofundamento.
Só que o indivíduo não pensa muito. Ele tem que atender ao Mercado. Mexer-se. Ser alguém na vida. Não deve ser inerte. Deve formar-se e trabalhar aos 20 logo. Deve ter carro, casa e pagar as contas. Deve viajar. Deve saber pelo menos dois idiomas.
Ele não consegue. E aí a morte o abraça por dentro.
É essa a diferença do niilista do século XIX para o do XXI. Ele não tem tempo para sê-lo. Ele tem hora marcada com o Mercado.
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ALGAR DE DEVANEIOS (textos poéticos e crônicas) [EM ANDAMENTO]
PoesíaAfunde em um universo de poesias góticas, ultrarromânticas, simbolistas, decadentistas e tudo o que você queira chamar. Aqui, a melancolia e a morbidez dialogam em cada verso, tecem uma teia de beleza nos territórios do macabro, do fúnebre e do somb...