Duas Sextas

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16/06 de 2023, pela manhã, minha irmã me convence a voltar para minha cidade natal para que eu possa visitar minha tia internada. Encarno em uma jornada tediosa de cinco horas até o lugar, atravessada pelo climão de peso e iminência da morte.

Chego às seis horas da tarde e minha mãe me recebe com um abraço choroso. Ela esteve em prantos. Noto a vermelhidão de seus olhos e o inchaço deles. Mais tarde naquela noite, pegamos as bicicletas, partimos até o hospital. As ruas se enchem da treva noturna, uma ou outra luz tentando afugentar as sombras.

Nunca gostei dessa cidade. Sinto como se as casas fossem prisões, suas cercas elétricas esticadas feito muralhas de arame, os muros são barreiras para se escalar. O hospital, então, se alastra pelo espaço com corredores estreitos onde as lâmpadas fluorescentes atiram silhuetas enormes nas paredes. Detesto cada porta, cada faixa em letras garrafais acima delas. Parece que quando o sol morre nos céus é ainda pior; pouca gente como se só alguns fantasmas estivessem dispostos a participar da peça trágica. Reconheço cada personagem: enfermeiras de branco, um médico de óculos passando com seu jaleco, cabelo curtinho do jeito que todos imaginam. Não há novidade.

Lá dentro, é a mesma coisa que entrar em um portal. Minha mãe anda ao meu lado. Vamos até uma enfermeira e contamos nosso anseio. Ela demora a responder. Sei o que está prestes a nos falar: "não tá no horário". Contudo, aparece outra, mais carismática, de rosa, cabelo amarrado em um rabo de cavalo, e aceita como quem sabe que se pode pular alguns muros sem se machucar. "Um por vez" ela diz, e minha mãe pede para que eu vá. Caminho atrás da moça por um piso que odeio, vejo faces ulceradas de tristeza e muita dor entre as portas de madeira. Chegamos à tal "Sala Vermelha". Entro. Levo aquele susto.

A cena se mostra pior do que imaginei. Pior do que minha mãe chegará a comentar. Minha tia, aquela menininha com Down, pequenina e de fios curtinhos, rechonchuda, está inconsciente. Seus olhos oblíquos sequer se movem, a língua posta para fora, já arroxeada. Cabos, aparelhos, toalhas e máquinas se emaranham em seu corpo. Dentro e fora dele. Tentáculos elétricos enfiados no nariz, na boca, amarrados a seu pescoço. Os pulmões enchem de ar por causa daquela coisa onde minha tia está atada. Ela formou uma espécie de simbiose com o equipamento. Mas... falta alguma coisa.

Onde está ela? A minha tia. Não em osso e tecido. Mas em alma. Aquela risada gostosa. Observo sua pele e ela está tão fria, tão pálida. Parece até que já estou olhando para um cadáver. Duro de admitir, mas não encontro sinal vital algum nela. Aqueles bipes na tela ao lado, aquela linha verde... Ela me diz alguma coisa além de um número? De um som agudo?

Desato a chorar porque aquilo tudo parece uma agressividade. Que jeito cruel de curar os outros... Não. Aquela lá na cama não é mais minha tia. Ela se tornou alguma outra coisa. Os aparelhos a abduziram e ela não parece saber disso. Foi capturada de maneira que não existe mais vestígio humano nem em sua respiração. Ao desinchar os pulmões, ela sofre um solavanco. Isso é assustador. Parece que a minha tia está entre esta vida e o além dela. Estou vendo um corpo fundido a um sistema eletrônico. Ela é um ciborgue.

Minha mãe saiu da Sala Vermelha chorando depois de mim. Destruída. No sábado e no domingo, só lamentação. Os irmãos, arrasados, tentaram levá-la para UTI, uma parte mais complexa do grande organismo em que se tornou. Qualquer movimento brusco e podemos perdê-la. No caminho ou depois. Ou ali mesmo. A parte orgânica do ciborgue está apodrecendo. O rim parou. E todo mundo tem temido que aquilo aconteça.

Eu, porém, já sei: a morte será apenas da carne. Minha tia sequer sabe que está aqui. Em algum plano metafísico, talvez. Posso enxergá-la enquanto espírito, lutando para se desprender de seu receptáculo e voar. Parar de sofrer. Quando sequer sabemos que estamos vivos, quando perdemos a consciência de nós mesmos, de quem somos, e nos fundimos a uma engenhoca, há pelo que se lamentar? Resta algum traço de sabedoria de que existimos e nos constituímos enquanto Ser? Compensa querer mantê-la neste plano, tendo em vista que ele nunca esteve preparado para compreendê-la e aceitá-la? Egoísmo o nosso prolongar a crueldade sobre uma criança como essa na forma de bisturis e agulhas. Mesmo que ela resista a esse martírio: a que preço? Quantas sequelas? O vento belisca meus ouvidos.

Com um dia faltando para fazer uma semana, recebi a notícia.

No dia seguinte, de novo uma sexta-feira, parti para as tragicidades do sepultamento.

ALGAR DE DEVANEIOS (textos poéticos e crônicas) [EM ANDAMENTO]Onde histórias criam vida. Descubra agora