Maria Luiza
Estava cansada de ter tanto empenho e nenhuma recompensa. Minha vida consistia em trabalhar, estudar, trabalhar de novo, as vezes dormir, comer, surtar por banda morta e repetir as mesmas coisas todos os dias.
Desde que me mudei da casa dos meus pais, não tinha aproveitado um dia de folga sem que tivesse alguma outra coisa para fazer. Logo que recebi a notícia de que tinha conseguido um emprego me prontifiquei a procurar um lugar só meu, uma casa pequena, com aluguel barato, em que eu pudesse ser livre pra viver em paz, eu e meu gato Heitor. Tive sorte na busca pelo lugar perfeito para uma futura estudante de psicologia, solteira e amante de felinos. Quem olhasse de fora poderia dizer que o local escolhido era uma espelunca, talvez fosse, mas era a minha espelunca e eu não poderia estar mais orgulhosa. Acontece que nem tudo são flores (ou nada são flores), e o mercadinho me dava um trabalhão, sem falar do cursinho que tomava todo o resto do meu tempo. Eu me sentia exausta na maior parte do dia, menos a noite, que era quando o meu cérebro resolvia me perturbar com o maior número de pensamentos intrusivos que ele conseguisse transmitir por minuto. Por isso, sempre que tinha oportunidade eu tirava um cochilo no meio do expediente. O estabelecimento quase não tinha movimento, a não ser de algumas idosas que sempre passavam por lá para comprar pão e condimentos, ou até mesmo para conversar com seu Antônio, o meu simpático e solitário chefe. Seu Antônio sempre me apoiava em tudo, antes mesmo de me conhecer mais a fundo, desde o meu primeiro dia ele tinha se dado ao trabalho de me acolher e me explicar passo a passo do que deveria ser feito. Ele era um senhor baixinho e grisalho, não tinha esposa ou filhos, a maior parte da sua família morava longe e tudo o que ele tinha estava aqui, no mercado.
Eu estava sozinha naquele momento, prestes a deitar, por mais que tivesse tido ordens expressas de não me enfiar no cômodo ao lado do caixa para dormir, tinha tido uma noite de sono péssima e não estava aguentando ficar acordada. Afofei a mochila que seria usada como travesseiro e me preparava para relaxar, quando um estrondo me fez praticamente pular de susto. O barulho vinha da geladeira de cervejas e eu me aprontei para agir, fosse ladrão ou fantasma, ninguém interromperia meu descanso daquele jeito e sairia impune.
— Quem está aí?
Não obtive resposta. Mais um estrondo seguido de um "droga" que soou feminino, me acalmando um pouco.
Mas mulheres também podem roubar.
Saí devagar do cômodo, tentando enxergar quem estava no corredor, quando finalmente encontrei o ângulo certo me deparei com uma cena que não esperava, era mesmo uma mulher, mas era tão tão bonita, alta, com uma ruguinha de raiva na testa, ajoelhada no chão, recolhendo as latinhas que ela havia derrubado. Fiquei vermelha na mesma hora, não sei se por estar surpresa com a presença da outra ou por ter sido pega não fazendo a única coisa que deveria fazer, atender os clientes.
— Oi, posso ajudar?
— Oi. Sim. Desculpe, eu... — Ela derrubou mais algumas latinhas. — Eu tentei arrumar mas elas continuam caindo.
— Sem problema, esse é o meu trabalho, digo, pegar as latas pra você.
— É, eu acho que sim.
Ficamos paradas por um instante, eu sem esboçar qualquer reação e a mulher na minha frente começando a parecer ainda mais irritada.
— E então...
— Ah sim, claro. Eu vou te ajudar.
— Obrigada.
Ela me mostrou um sorriso falso, obviamente descontente, e eu senti vergonha mais uma vez.Como é possível ser tão esquisita? Se comporte Maria Luiza.
Ajoelhei ao lado dela e me concentrei em recolher tudo o mais rápido possível, sendo atingida por um perfume doce e gostoso de baunilha, um cheiro de gente rica que eu só sentia quando era convidada para as festas de parentes que pertenciam ao lado financeiramente bem sucedido da família da Fernanda. Após recolher tudo, peguei um fardo novo de cerveja e o entreguei na mão da garota, que levantou limpando os joelhos, ainda mostrando um ar de impaciência. Ela continuou forçando uma feição amigável que mais parecia uma careta e se dirigiu ao caixa.
— Deu trinta e seis reais. Vai ser cartão ou dinheiro?
— Cartão. E esse salgadinho também. Vou levar três.
— Okay. CPF na nota?
— Sim.
Mostrei a maquina onde ela deveria digitar o CPF e quando o botão verde foi pressionado pude ver seu nome na tela. Amanda. Suspirei. Digna de amor. Amável. Eu e meu ascendente em peixes. Suspirei de novo. Finalizei a operação, entreguei as sacolas e agradeci. Amanda também agradeceu e saiu, não sem antes deixar uma avaliação na caixinha onde estava escrito "avalie nosso atendimento". Demorei alguns segundos para me dar conta do que ela tinha feito. A maldita caixinha, eu a havia escondido há meses para não ter problemas. Por mais que fosse esforçada, falar com o público não era o meu ponto forte, e eu sempre acabava brigando com um ou outro cliente mal educado.
Quando Amanda entrou no carro, corri para ver qual era a avaliação que ela tinha feito mas, para o meu azar, a caixa era fechada com um cadeado, impossível de abrir sem dar muito na cara. Pedi mentalmente para me transformar em algum mutante dos x men e ler o pensamento da Amanda, sem sucesso, óbvio. Talvez Amanda fosse mesmo mais uma rica insuportável, talvez ela tenha me dado a pior das avaliações, ou quem sabe a melhor? Eu não tinha como adivinhar, e no momento tinha outra coisa com o que me preocupar: a geladeira lotada de cerveja choca.
