Capítulo XVI - Pesadelos

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O som vinha de um violino sustentado pelas mãos frágeis de um garoto. Eram notas tristes, porém precisas. E no fundo, alguém parecia respirar pesadamente. Ouviam-se sopros angustiados, desesperados... Súplicas longínquas.  Era uma dor descomunal e incapaz de ser compreendida, aprofundava-se pelo ser e destruía qualquer sinal de vida. Como uma terrível tempestade do Norte, em companhia dos ventos destruidores do Leste, chegava com sibilos estrondosos e força assustadora.

Ao fechar os olhos, enquanto todas essas sensações fluíam com tanto desespero e agonia, e as lágrimas escorriam pela face corada, podia-se ver uma jovem correndo, adentrando a floresta e morrendo aos poucos.  Ganhando velocidade enquanto ainda podia. Ela  acreditava ver a saída, em seu coração jazia um trisco de esperança.

Morria buscando a vida. Correr parecia sensato. Aventurar-se por uma última vez, quando ainda esperava ser apenas mais uma, não a primeira e não demasiadamente perto da última. O fim, no entanto, chegou de chofre. Surgiu diante dela com imensa brusquidão e imprevisibilidade, a dor não pôde ser contida. Era um enorme poço. Um enorme poço sem fim. Infinito em todas as direções. Para onde quer que ela olhasse, não via saídas, não havia lugar onde encostar-se ou pedir abrigo. Estava sozinha, caindo, caindo...  Adentrando a gélida escuridão. Desprendendo-se de todas as coisas boas a cada milha de queda.

Gritou. Gritou, apenas. Gritou, culpando a Deus, desejando que sua súplica e sofrimento atingisse e rompesse os céus, num desesperado pedido de socorro.

Gritou... porque além disso, não havia nada a ser feito. E mesmo reunindo todas as forças; lutava em vão. 

Gritou até não haver mais voz, até a garganta arder diante das navalhas imateriais a adentrarem a carne.

Gritou, por fim aquietando-se, já sem ímpeto ou vontade. E então, os olhos do pai caíram sobre ela, esbanjando um brilho acolhedor e único. Pôde jurar que ele dizia “Não temas, minha querida” e a boca de lábios finos e arroxeados pela presença da morte, moveu-se um pouco, como se realmente quisesse proferir tais palavras. No entanto, naquele lúgubre momento, ouviu-se apenas um longo e desesperado suspiro. O último.

A jovem já não era vista de cima, a essa altura, a própria Audrey era o centro de tudo. Sob a pele em terror, foi de encontro ao chão. Os joelhos emitiram um som estridente com o impacto. O peito foi esmagado com feroz intensidade, ela novamente gritou, dilacerando completamente a garganta e procurando estímulos onde não poderia encontrar.

Sem o mínimo de esperanças ou ver muito além das lágrimas a embaçar a visão, ergueu o rosto.

Eles estavam mortos, os dois.

Os corpos pálidos jaziam sobre a cama.

No silêncio, sentindo-se igualmente sem vida, tentou ir até eles. Seguraram-na pelo braço; no entanto, não houve tentativas que a fizeram hesitar.

Naquele instante, não era ninguém. Dentro dela não havia nada, além de um estômago embrulhado e um coração em martírio. Era apenas aflição. Mas, como se nem digna disso fosse, a ânsia se transformou em ternura.

Em gestos leves e tranquilos, deitou-se sobre a cama, entre eles, e os envolveu num abraço amoroso, igualmente quando era pequena.  Apenas uma criança, incapaz de compreender e aceitar.

Os corpos outrora com o calor paternal, estavam frios.

“Como tal coisa é capaz de acontecer?”, foi o que pensou.  “Que tipo de mundo cruel havia lhe concedido uma vida plena, para em um inescrupuloso piscar de olhos, tirar-lhe tudo. E todos os momentos, os sentimentos e sensações adquiridas, tudo... Como, absolutamente tudo, era agora arrancado deles? Como uma vida inteira poderia se findar em corpos frios, como meros espectadores e recipientes descartáveis? Que tipo de deus brincava assim com seus filhos? Que existência era essa, qual estavam todos condenados?” Foi a dúvida mais cruel. E no momento, não se arrependeu por desafiá-lo, por descrer de tudo, até de si. Pois não havia espaço, senão para a perda.

O Duque CampbellOnde histórias criam vida. Descubra agora