Capítulo III - Tête-à-tête

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Depois de adentrar a noite e a madrugada com a leitura ininterrupta de 65 páginas, caminhar em círculos pelo quarto, como um cão costuma fazer quando está atrás do próprio rabo, e encontrar em seu vocabulário vasto inúmeros adjetivos que tinham como única finalidade infamar a imagem do Duque, Audrey não conseguiu mais dormir.

Virava-se na cama a cada dez segundos, murmurava palavras desconexas, mexia nos travesseiros, nos lençóis... E quando cansou de si mesma e da própria inquietação, deitou com a barriga para cima e fitou um ponto qualquer. A inquietação, contudo, tornou-se pior, pois entre a iluminação escassa, bastou uma análise rápida dos quadros da decoração do cômodo, para ela se encolher perante a sensação angustiante provocada por uma das gravuras expostas; parecia que a figura macabra, presa a moldura escura e oval, a observava com pretensões malignas. Ela temeu também as sombras que entravam pelas frestas da janela e formavam figuras esquisitas nas paredes, costumava se retesar perante esse tipo de coisa da mesma forma que uma criança, cujo pavor das assombrações faz buscar os pais no meio da noite. A Srta. Morse era assim, metade independente; dois sextos selvagem e um sexto infantil. Todas as características conversavam entre si, mas às vezes, uma contradizia a outra. Foi esse o caso.

De antemão envergonhada pelo que faria, mas sem cogitar enfrentar os terrores da noite, ela levantou. Cobriu-se com um xale quente e pesado, e nas pontas dos pés abandonou os aposentos. Não precisou andar muito, pois o quarto em que Hazel estava hospedado ficava imediatamente ao lado, uma das acomodações mais luxuosas do castelo.

Audrey entrou em silêncio, esforçando-se para não bater em nada e consequentemente despertar o primo. Sem alarde acomodou-se na cama, mas a leveza dos gestos não foi suficiente, pois Hazel abriu os olhos de imediato ao sentir o corpo feminino perto do seu, na verdade, notara a aproximação antes mesmo de ela acontecer.

Inconvenientemente ele exibiu um sorriso largo e sincero; sonolento, mas incontestavelmente verdadeiro e divertido.

— Precisa parar de vir a minha cama como uma gata espreita, ou então deve arranjar um marido para dividir o leito. Mamãe pode lhe conseguir um pretendente excelente, basta que exponha a ela esse desejo — ele desdenhou, sabia como Audrey evitava as habilidades casamenteiras da Sra. Hall.

— Estou com medo — disse baixo demais. Envergonhava-se dos próprios temores, tanto que sequer se deu ao prazer de responder a altura a brincadeira dele.

— Perdeu o direito de usar essa desculpa quando ganhou seios. Uma troca justa, penso eu.

— Não tente me constranger, sabe que não funciona.

Ele riu, puxando-a para mais perto. Já de olhos fechados, sussurrou:

— A excêntrica Srta. Morse não passa de uma fedelha medrosa.

Ela não deu importância ao que ouviu. Sabia que Hazel gostava de protegê-la dos medos insanos. Eram confidentes inseparáveis. Desde pequenos possuíam uma afinidade maior que a do próprio Hazel com a legítima irmã Caroline. Diziam até que a personalidade tempestuosa e indomável de Audrey era resultado da infância vivida ao lado do primo travesso e hiperativo.

Quando ainda não passava de uma criança, Hazel sentia prazer em passar meses na casa dos tios e, consequentemente, criou com Audrey uma relação saudável e bastante afetuosa.

A Srta. Morse tinha para si, que agora o primo tornara-se a única pessoa com quem podia, sem receios, compartilhar suas angústias. Foi nos braços dele, inclusive, que muitas vezes chorou a triste ausência dos pais e se permitiu dar uma trégua para a solidão. Ela sentia muito a falta dos parentes e sofria com isso, mas sua personalidade impedia de demonstrar qualquer coisa do tipo. Preferiu, desde a fatídica manhã em que os perdeu, dar a entender que havia superado tudo da melhor forma possível.

O Duque CampbellOnde histórias criam vida. Descubra agora