Verdade

5 2 0
                                    


Uma informação valiosa. Se você acredita em verdades ditas da boca de animais, realmente é uma informação valiosa. Mas eu me pergunto se ele vale o meu tempo, essa criatura com um enorme complexo de superioridade, confiante na sua habilidade em me controlar. Eu consigo sentir, da mesma forma que sinto suas irises repartidas na minha nuca, sua influência, como uma onda de calor atingindo meu corpo, tentando me puxar em diferentes direções e exercer sua soberania. Mas a minha vontade humana era muito mais forte, então deixei ele me guiar como um barco que se deixa levar pela correnteza, mas ao estender suas velas se coloca no caminho certo.

O que tinha acontecido não tinha sido totalmente de minha autoria, mas fazia algum tempo que eu não me sentia mais como eu mesma. O pescoço quebrado do diretor havia feito uma impressão duradoura na minha mente e eu conseguia sentir como se fosse o meu. O terrível barulho do osso estalando, a pele gorda girando em direções não naturais, e por fim, o corpo caído no chão como uma marionete. A cena se repetia infinitas vezes, ora do mesmo ângulo, ora de outra perspectiva, como se para aumentar o meu sofrimento. E em cada uma das vezes eu conseguia ver a horrível expressão no meu rosto, na fração de segundo em que eu perdi o controle de mim mesma.

Talvez ele tivesse achado que eu não aguentaria o choque, mas a realidade é que eu sou uma pessoa muito diferente do que ele pensa. Como ele pôde acreditar que uma pessoa morta seria demais para mim? Eu que já trouxe muito mais vida para esse mundo do que quase qualquer outra pessoa, eu que arranquei pessoas de situações horríveis e as curei de suas dores. Eu tinha muito mais direito do que qualquer um para tirar uma vida, ou quantas fossem, se eu pudesse adquirir o conhecimento que eu queria. A nova motivação parecia assumir meu corpo com uma força que eu não sabia que tinha, contraindo meus músculos para um estado de alerta, enquanto eu juntava peças de quebra cabeça maiores do que todos os conhecimentos que eu havia aprendido em vida, tentando criar uma paisagem que era o próprio universo.

Era tudo grande demais para ser pensado junto, então eu movia pedaços daquele conhecimento para o centro da minha mente e os processava aos poucos, lentamente tentando entender seus mínimos detalhes, mas a informação que ele havia me dado, era como algo ainda maior, como uma enorme peça no meio do quebra cabeça, capaz de me ajudar a encontrar todas as bordas. Eu só não tinha informações o suficiente para entender sua veracidade, ou saber se tudo aquilo era possível. A peça central me encarava com seu conhecimento obscuro, muito mais do que todos os humanos juntos iriam saber em todas as suas vidas, agora estava na minha mente, dividindo o espaço com a cena repetida do assassinato. Elas brilhavam e estalavam em sintonia, como se estivessem de alguma forma conectadas.

Eu estudei o corpo humano minha vida inteira, memorizei e anotei cada veia e cada terminação nervosa, e elas eram tantas que eu mal conseguia entender como estavam todas tão na ponta da língua. Cada pedaço do corpo estava em fácil acesso, eu poderia abrir, cortar e arrancar o que eu quisesse de dentro dele, todos os ossos se descolavam e voltavam ao lugar com um piscar de olhos. Mas a única coisa que eu nunca fui capaz de imaginar, em todos esses anos, era a limitação do que se passa dentro do pensamento. Ele sempre pareceu infinito para mim, indecifrável e complexo, cada pessoa carregando uma única combinação das milhares possíveis, nunca a ser repetida novamente. Cada fragmento de personalidade, cada migalha de motivação, se uniam nessa cidade de memórias, cada rua uma conexão com o além, cada prédio, perfeitamente arquitetado com os acontecimentos de anos e anos de vida. E entre eles, o próprio ar tingido de vermelho, o sangue divino que segurava todos eles juntos em um céu sem nuvens, permitindo a própria existência entre as suas numerosas bênçãos.

Mas agora, os fragmentos de memória se tornaram casas de dois andares, espremidas em um minúsculo bairro e cercadas de incerteza. O próprio sangue que corria dentro das minhas veias parecia fosco, uma cópia barata de uma existência completa. Fechei minha mão com força, ainda me lembrando do frasco de vidro que eu havia abandonado, nos meus lábios eu ainda era capaz de sentir aquilo que me liberava, aquilo que me iluminava além de limites comuns. O sangue dele corria nas minhas veias em uma estranha mistura, me puxando em direções diferentes em uma intensa dicotomia de todo o meu ser, que parecia querer se dividir e se estilhaçar.

Durante todo esse tempo, esse 15 centímetros de crânio, abrigando 400 gramas de massa cinzenta, não eram capazes de segurar toda a grandeza do mundo. Esse espaço antigamente infinito, se tornara pequeno e apertado como uma roupa velha. Eu precisava de mais, algo maior e mais potente, algo que não dependesse de limites reais ou pequenas três dimensões com seus metros e centímetros. Eu precisava de algo maior do que o espaço, algo que não tivesse fim, e se estendesse de maneira preguiçosa entre tudo, como uma nuvem cobre a superfície de uma montanha. Eu precisava do tempo. Eu precisava fragmentar todo o conhecimento que ele havia me dado por entre as frestas do tempo, a única coisa capaz de segurar peças desse tamanho. 

Com a motivação líquida que corria em minhas veias, fui capaz de ter a força necessária para entender que aquela prisão de carne nunca existiu, e que todo o meu corpo sempre fora uma embalagem, para a minha enorme alma, que superava todos os limites jamais superados antes. Eu olhei para baixo, e aquele pequeno gato que andava normalmente não era capaz de ver a minha mudança, agora com todo o espaço do mundo, eu podia facilmente juntar as peças e entender o quebra cabeça. Mas algo me fez retornar, eu precisava de mais se eu queria entender todos os detalhes, mais informações, mais conteúdo. Eu via agora que a peça central que ele tão galantemente havia cedido era apenas um ponto no meio da imensidão de faltas. Eu reduzi todo o conhecimento como em uma foto, algo bidimensional simples, e voltei com a minha consciência para dentro da caixa. Se eu queria entender todo o mistério, precisaria colaborar com o gato. 

Sete NósOnde histórias criam vida. Descubra agora