Branco

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Uma imensidão de branco, de calma, de tristeza

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Uma imensidão de branco, de calma, de tristeza. Quando foi a última vez que você comeu? Eu ouço uma voz me chamar, mas ela é como um sussurro de um fantasma. Talvez o fantasma seja eu. As paredes brancas me puxam cada vez mais para dentro e não consigo deixar de reparar que as pilastras parecem ossos saindo do chão. Eu estava andando por entre as costelas de uma grande besta, um esqueleto de baleia, e o chão parecia estar me puxando. Olhei para os papéis que segurava e comparei eles com as letras da porta, a tinta preta se mexia como formigas correndo no papel. Eu não deveria estar trabalhando, e eu sabia que nesse momento ela estava me esperando, mas eu não conseguia parar de pensar no acidente de ontem. Abri a porta e ele estava deitado, em coma obviamente, mas eu não consigo deixar de pensar que vi seus olhos abertos por trás do vidro, eu não sei, o cansaço pode estar me controlando.

Eu puxei seu lençol lentamente e examinei o meu trabalho, as pernas estavam ruins, eu me lembro da quantidade de tempo que passei removendo pedaços de osso e metal de dentro da carne, a luz forte e as pinças, o branco das luvas já manchado de sangue. A borracha é uma coisa terrível, totalmente estéril e impermeável. O sangue ficava em cima dela de forma grotesca, nunca sendo absorvido, apenas parado como se em cima de um prato, se equilibrando em poças separadas, gotas se concentrando nos dedos. Minhas mãos eram firmes e minha respiração inexistente, e ter que ser rápido e ao mesmo tempo delicado era algo que eu nunca tinha aprendido completamente. Os enfermeiros, as instrumentadoras, os monitores, as gazes; todos eles me olhavam, esperando eu agir. Eu respirei fundo e me concentrei no sangue, nas lindas e terríveis cores de vermelho que se desprendiam de dentro dele, como elas se equilibravam nas minhas luvas, como elas pulsavam de dentro do seu corpo, eu conseguia sentir, como se nossos corações estivessem batendo ao mesmo tempo, bombeando o sangue para fora, arrancando a vida de dentro dele e encharcando gazes, lençóis e por fim caindo no chão em pequenas gotas douradas.

Eles nunca me contaram que eu iria sentir a dor. Em todos os anos dentro da faculdade de medicina, eles nunca me falaram que eu iria sentir a dor. Talvez eles devessem abrir um espaço entre todas as centenas de aulas de anatomia para nos mostrar qual á parte do corpo humano que processa a dor dos outros, a minha certamente estava defeituosa. Eu tremia quando cada corte na carne dele doía em mim, era como se eu fosse a médica e a paciente ao mesmo tempo, e salvar a sua vida era como salvar a minha. E nesse momento olhando para o metal que saía de dentro da sua carne e tingia os curativos de sangue, era como estar olhando para as minhas pernas novamente, era como se eu estivesse na cama. Cobri seu corpo delgado novamente e tentei me acalmar. Como esse homem sobreviveu? Não fazia sentido. Seus sinais se estabilizaram rápido demais, sua recuperação estava sendo perfeita, sem infecções ou rejeições, era tudo perfeito demais. Eu me aproximei de seu rosto e percebi que sangue caía de trás de sua orelha, o local que bateu no chão durante a queda. Era só um corte menor então não precisou de pontos, me lembro de ter colocado um curativo, mas agora a área estava exposta. Como isso aconteceu? Será que ele mesmo tirou o curativo? Será que ele estava acordado? Impossível.

Encostei meus dedos perto o suficiente para pegar uma gota de sangue que caía em cima do lençol, era como segurar um carvão em brasa, quente e vivo. Eu conseguia sentir o cheiro metálico e alcalino, e logo imaginei que esse homem deveria ser muito forte, para se manter nessas condições, como se dentro da sua alma queimasse um fogo muito quente, quase como alguém que eu conheci a muito tempo. Eu aproximei meus dedos dos meus lábios e toquei nessa gota, que imediatamente se espalhou por eles, entrando nas linhas e poros e se dissipando completamente em segundos, finalmente sem a borracha em seu caminho. Era totalmente diferente de qualquer coisa que eu conhecia. 

- Doutora Calto? - Um enfermeiro entrou correndo. - É a sua irmã, ela ligou de novo, disse que está te esperando.

- Avise a ela que eu terminei por hoje. - Eu tirei minhas luvas e as joguei na lixeira. - E avise que eu voltarei amanhã de tarde.

O carro parou bem na frente do sinal e eu entreguei duas notas ao motorista que me retornou uma mão grande com algumas moedas. Saí do carro e segurei as moedas com força, sentindo o barulho que faziam quando me distraí e tropecei no desnível do chão de pedra. As minhas moedas caíram no chão à minha frente e eu me abaixei para pegá-las, segurei elas com as pontas dos dedos e ouvi novamente o barulho que faziam na minha mão. Até que olhei para frente e me deparei com algo que não esperava encontrar de novo na minha vida, a loja de minha tia. Esse antiquário terrível foi o motivo de tantos pesadelos, tantas noites em claro. Os vidros sujos escondiam peças de metal que mais me lembravam instrumentos de tortura, e o infinito exercito de pratos e xícaras de porcelana me lembrava o mesmo branco que tanto me aterrorizava, essa terrível cor de osso. 

Abri a porta com dificuldade e encontrei minha irmã sentada perto do balcão com o que parecia ser um enorme livro em seu colo, quando ela me viu, Cere me encarou em completo pavor e acenou para que eu chegasse mais perto. Que novidades terríveis nossa tia iria desenterrar de dentro do seu caixão? Será que nunca teria fim? Mesmo depois de morta ela insistiria em nos arrastar para sua vida, para o meio de seus infinitos problemas, casos e histórias sem sentido. Eu não aguentava mais. Eu avisei Cere que não queria ter nada a ver com isso, meu nome nem constava no testamento, até onde eu me importava, ela era a única herdeira de nossa tia e a loja era responsabilidade dela. Mas quando minha irmã me ligou implorando para que eu fosse com ela uma última vez eu não consegui negar.

- O que é isso que você está lendo? - Perguntei. - Mais um tomo antigo?

- Esse foi escrito pela nossa tia. - Sua voz era fraca. - É um relato de coisas.

- Que tipo de coisas? - Eu pisquei - Fala algo sobre como ela morreu?

- Calto. - Ela me encarou. - Esse livro conta o futuro.


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