Duplas

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Caí em algo macio. Talvez um sofá ou uma cama, algo que parecia querer me engolir dentro de suas dobras delicadas. As ansiedades no meu coração se misturavam e ora brilhavam, ora acendiam, como as chamas de um fogo que se recusa à morrer. Tentei identificar o cenário, achar qualquer coisa que me desse uma pista sobre esse jogo. Se eu teria que me concentrar em sobreviver, eu iria, e pretendia proteger aqueles que amo no processo. A cama era branca e tinha um enorme sol bordado em amarelo. Em volta tudo era branco, como uma infinita sala de dentista, com luzes sintéticas e um chão frio de piso. Me sentei na borda da cama e pisei no chão, nenhum outro detalhe do quarto parecia importante, apenas o fato que de frente para a cama havia um enorme espelho que se estendia infinitamente em todas as direções. Eu conseguia ver o meu reflexo sentado na cama, o rosto assustado, os cachos caindo em cascata e a roupa azul.

Era estranho, me encarar depois de tanto tempo. Eu conseguia ver as influências do dia no meu rosto como linhas de velhice que amassavam e deformavam meu rosto, como se minha determinação estivesse se quebrando e caindo no chão como uma máscara de gesso. Eu precisava me tornar a pessoa que seria capaz de vencer, usar a minha motivação como uma segunda pele. Me olhando no espelho eu endureci meu rosto, fiquei reta e encostei no vidro, que imediatamente caiu como água no chão, revelando meu reflexo do outro lado, imóvel. Era outra Nyx, parada na minha frente me encarando, eram as mesmas feições, as mesmas roupas e os mesmos olhos escuros. De algum lugar, Haan surgiu, suas patas pisavam desafiadoras no chão e ele se sentou do meu lado.

— Sabe Nyx, eu até gosto de você. — Ele falou. — Achei que seria bom aproveitar esse último momento de vida que você tem.

— Eu não pretendo morrer. — Respondi.

— Mas é claro que não. — Ele continuou. — Eu achei que seria justo explicar a sua situação, já que ela é a mais complexa.

— Como assim? — Perguntei.

— Se você morrer, todos morrem. — Ele pareceu dar um sorriso. — E honestamente, sua morte traria problemas até para mim.

— Então você tem motivos ocultos, como sempre. — Eu deduzi. — Então me explique, porque outra de mim?

— É uma charada tão simples. — Ele andou até a cama. — Eros irá cair nessa cama à qualquer momento, e do outro lado do espelho, outro Eros também cairá. 

— Precisamos descobrir qual de nós são os verdadeiros? — Continuei. — Não parece tão difícil.

— Que menina rápida. — Ele disse andando. — Existe apenas um pequeno obstáculo.

— Qual? — Eu tremi.

— Bom, você parecia tão confiante até tão pouco tempo, o que houve? — Ele pisou por entre às cobertas. — Vocês precisam saber qual de vocês são reais, e obviamente erros resultam em morte. Mas não é só isso.

— Me diga. — Eu gritei.

— Você, meu girassol, estará muda. — Ele virou a cabeça. — Incapaz de falar, gritar, cantar, ou qualquer outra coisa que você queira fazer com a sua voz.

— O que você... — A voz ficou presa na minha garganta.

— Exatamente, que bom que você entendeu. — Ele sumiu debaixo da cama. — Boa sorte.

Imediatamente comecei a me desesperar enquanto minha garganta se contorcia incapaz de fazer nenhum som, a outra Nyx fez os mesmos movimentos do outro lado, as mesmas respirações, exatamente sincronizadas, apenas segundos depois de mim. Isso seria impossível, como eu falaria com Eros se eu não conseguia emitir nenhum som? Como eu saberia qual deles é real? Minha mente continuou pensando em formas de provar que eu era real quando um barulho forte indicou a chegada de Eros. Eu não sabia para qual deles correr então me mantive no meio, encolhida, e a outra Nyx fez o mesmo. Os dois Eros se levantaram confusos e andaram até o meio quando nos viram.

— Nyx! — Eles disseram ao mesmo tempo. — Eu fiquei tão preocupado. Isso é um espelho? 

Eu precisava pensar, como explicar para o Eros correto o que estava acontecendo sem ser enganada pelo errado? Sabendo que tudo que eu fizesse seria imitado pela outra Nyx, sinalizei que estava sem voz e eles logo entenderam. Consegui visualizar enquanto a mente de Eros trabalhava, suas sobrancelhas se focando simultaneamente em diversos lugares e detalhes, tentando entender qual era a correta. Seus olhos verdes pareciam cansados, a charada era absurda e impossível, as cópias faziam tudo exatamente da mesma forma e quase ao mesmo tempo, demorariam séculos até que fossemos capazes de identificar qual deles era real. Até que de repente, algo aconteceu.

— Nyx, seja lá qual de vocês for real, eu fico feliz que esteja bem. — O Eros da esquerda falou.

— Nyx, eu estou assustado. — O Eros da direita disse. — Mas iremos resolver isso juntos.

— Preciso que as duas fiquem uma do lado da outra, talvez isso ajude. — O Eros da esquerda ordenou. — Fisicamente vocês são iguais.

— Eu acredito que eu conseguiria notar se algo fosse diferente. — O Eros da direita riu. — Já que eu conheço seu corpo e tudo mais.

— Fique quieto. — Disse o Eros da esquerda. — Isso não está ajudando.

— O amor da minha vida está na minha frente e eu não sei dizer quem é quem. — O Eros da direita continuou. — Não vai ficar muito pior do que isso.

— Vai ficar pior se você continuar. — O Eros da esquerda brigou. — Será que você podia tentar ser um adulto ao menos por um momento? 

— Um adulto? Olha quem fala. — O Eros da direita ficou reto. — Você está se passando por mim e colocando a vida da Nyx em risco.

— Você não é real. — O Eros da esquerda gritou de volta.

— Isso é o que você pensa. — O Eros da direita acertou um soco em cheio no outro.

Pelo menos agora seria mais fácil diferenciar os dois, eu pensei.

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