Cinzas

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O calor que subia pelos tecidos em chamas era insuportável, os barulhos que se desprendiam do confronto eram altos e agudos, verdadeiros guinchos de dor e respirações descompassadas. Ela realmente havia queimado tudo que havia dentro dela, o fogo era tão natural que fazia parte dela, eles dançavam juntos como se fossem uma coisa só, Nyx não era feita de fogo, o fogo era feito dela. Mas eu sabia que não iria durar pra sempre, ela não iria conquistar a charada de Haan apenas com força bruta, eu precisava tomar conta disso. Mas eu nunca fui tão inteligente assim, tão capaz de entender as coisas embaixo das linhas, ou seriam atrás das linhas? E afinal, que linhas? A minha visão cansada foi possuída por uma enorme folha de caderno, as linhas se alternavam em enormes grades de metal, e eu estava preso, dentro ou fora eu não sabia.

Uma porta, ou um alçapão, algo quadrado estava embaixo da cama. Meus dedos doíam conforme eu apertava com força suas dobras e tentava puxar a placa para fora no meio das chamas. A fumaça que subia machucava meus olhos e nariz, eu tossia desesperadamente enquanto tentava, até que ouvi o som, ou seria uma vibração? Algo aterrorizante que parecia se desprender como uma única nota, um grito, um rugido, algo animalesco que saía por entre os dentes dela, algo que era a própria vontade de viver, de lutar, de existir. Eu vi quando as duas cópias caíram em agonia no chão e Nyx finalizou tudo com uma última lufada de ar quente, que tirou os dois da existência de uma só ver. Quando ela se virou, não era mais um ser humano que eu contemplava, e sim uma divindade, algo ancestral e poderoso, como se dois corpos habitassem um único ser.

Seus olhos escuros agora brilhavam com a força das estrelas, as chamas que se refletiam neles eram vermelhas e intensas, até que se tornaram gastas e sumiram, seu corpo ainda estava de pé, mas logo caiu ao meu lado. E tudo virou cinzas, as paredes se esfarelaram em pó branco, o chão se tornou coberto de fumaça, e a única coisa naquela sala que havia mudado de um inferno para neve, eram nós dois, Nyx se tornou pequena, ainda menor do que antes, seus olhos agora também eram cinzas, apagados e mortos, seu corpo frio se agarrou ao meu, ela havia perdido a voz novamente. Suas mãos agarraram as minhas e ela as apertou de forma pontual, ela dependia de mim agora, e eu jamais a decepcionaria. 

— -. .- --- ... . .--- .- ..- -- .. -.. .. --- - .- — Ela me apertou.

— Eu não vou, eu prometo. — Eu afaguei seu cabelo.

O alçapão se abriu lentamente quando eu o acertei com força, sua passagem dava para um comprido túnel, largo o suficiente para nós dois, mas tão escuro que mal conseguia identificar o material das paredes, o local que estávamos de repente pareceu seguro e familiar, mas conforme as cinzas caíam, o ar foi entrando no meu peito com cada vez mais dificuldade, e percebi que Nyx também sofria. Nós estávamos sufocando aos poucos, e ficar aqui nos traria apenas uma morte pacífica. Segurando Nyx o melhor que pude, me joguei para dentro daquele buraco, e me surpreendi ao perceber que sua estrutura era lisa e metálica como um duto de ar, e nós escorregamos de forma suave pelo que pareceram minutos inteiros.

Finalmente, a luz apareceu debaixo de meus pés, tão forte que meus olhos doíam, e novamente, caí em uma cama. Os lençóis cor de vinho nos abraçaram e nos puxaram para baixo, e eu percebi que Nyx havia caído em um sono pesado, seu rosto ainda estava coberto de fuligem mas ela parecia feliz, como alguém que se livrou de um enorme peso dentro de si. Me levantei e resolvi andar pelo lugar, que parecia um quarto bem arrumado mas de alguma forma repleto de quinquilharias, livros velhos e diagramas cobriam as paredes, vidros de perfume vazios e tecidos coloridos forravam as estantes que pareciam imensamente frágeis, como algo que poderia a qualquer momento cair no chão e se espatifar. Dentro do quarto havia uma mesa, forrada com um tecido roxo, em cima dela haviam seis cartas viradas para baixo e uma única vela quase no final, ainda acesa. Por quem, eu me perguntei, e esmaguei a chama entre os dedos para que não pegasse no tecido.

Virei as cartas uma por uma mas não consegui entender seus desenhos, talvez quando Nyx acordasse eu devesse comentar isso comentar com ela, sua vontade de saber o futuro através das cartas sempre foi algo digno de risada. Uma inspetora de polícia treinada e racional com uma propensão para ser agressiva e dura, e ao mesmo tempo uma sonhadora que buscava respostas nas estrelas. Uma única porta indicava a saída do quarto e apesar de não querer deixá-la sozinha, resolvi sair e explorar. Fechando com calma a porta de madeira atrás de mim, encontrei uma espécie de balcão do que parecia ser uma loja muito esquisita, a quantidade de coisas acumuladas nas paredes e pelo chão era demais para minha mente processar ao mesmo tempo, e a fachada de vidro parecia comum o suficiente para eu acreditar que estava em casa novamente, e não nesse mundo distorcido que eu sabia que estava. 

Pisei por entre os cacos no chão e colei minha testa no vidro, lá fora tudo parecia calmo e imóvel, um retrato da mais perfeita paz. Será que havíamos morrido no meio disso tudo, e achamos um pequeno paraíso? Eu bem sei que qualquer situação em que você esteja bem eu encontraria paz. Um estrondo, o barulho metálico de várias colheres e garfos se chocando umas nas outras. Olhei novamente para fora e encontrei Mica, correndo desgovernado pela rua com o mais puro terror estampado em seus olhos.

— Mica! — Eu saí correndo. — Sou eu, Eros! Finalmente nos encontramos de novo.

— Eros! — Ele gritou já sem fôlego. — Socorro!

Antes que eu pudesse perguntar o motivo de sua preocupação, já havia chegado ao seu lado com um sorriso no rosto, ele não estava ferido e não parecia ter passado por nenhuma provação ou jogo absurdo que nem nós. Por um momento eu senti ciúme dele, até que me virei de costas e encarei nos olhos a terrível besta com cara de coruja que nos perseguia. A situação era tão absurda que eu não deixei de rir, suas garras cortantes pousaram no chão e ele abriu suas asas que eram maiores do que prédios. Não dá para ficar pior do que isso, certamente. Mica me puxou para o chão me protegendo de uma lança enferrujada. Eu segui a mão que segurava a lança e encontrei apenas uma armadura vazia que se movia de forma demoníaca. Talvez o desafio de Mica estivesse sendo um pouco mais intenso.

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