Os Futuros

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O futuro de cada um deles, ela diz, como se fizesse alguma diferença. A coisa que se apossou da minha irmã já assumiu ela quase que completamente, e a verdade é que não existe mais nenhuma esperança para que ela retorne. A cada momento ela vai se afundar mais dentro desse poço e no final, não vai restar nada indicando que ela existiu. Renunciar a própria humanidade é um caminho sem volta, um caminho que minha irmã resolveu trilhar sem dar a devida importância, e ela pagaria o preço por isso. Esse mundo, mesmo se não estivesse devastado, ainda não seria lugar para ela. Não é possível ser algo que você não é, e muito menos trocar as coisas como se tudo fosse substituível. Mesmo que o corpo dela seja trocado, sua alma nunca ocupará o espaço de outro. O futuro dela era um de tristeza. Coloquei as cartas na mesa, viradas para baixo como minha tia me ensinou e esperei que Calto escolhesse cada uma delas.

- A primeira. - Apontei para a carta. - É quem?

- Nyx. - Ela sorriu de forma venenosa. - O que o futuro reserva para ela?

- O sol. - Eu virei a carta calmamente. - A segunda?

- Eros. - Ela disse irritada. 

- Os amantes. - Eu virei novamente. - Quem é a terceira carta?

- A terceira ... - Ela pensou por um momento. - Aquele garoto que estava com você, qual o nome dele? 

- Mica. - Eu respirei fundo. - A torre.

- Essa carta está errada. - Ela olhou para o desenho. - Está de cabeça para baixo.

- Eu sei. - Eu engoli em seco. - A próxima.

- Você. - Ela encarou animada.

- Eu... - Virei a carta assustada. - A sacerdotisa.

- Que previsível. - Ela bufou. - A próxima é aquele outro homem.

- Marcos. - Eu virei curiosa. - O enforcado.

- Isso deve ser ruim. - Ela riu. - Sobraram duas.

- Uma é você, a outra é o seu amigo. - Eu apontei para as cartas. - Qual você quer virar primeiro?

- Ele. - Ela se sentou reto. - Quem ele é?

- O Diabo. - Virei a carta. - A última é você.

- Me surpreenda. - Ela disse animada. - Quem eu sou?

- A justiça. - Virei pela última vez. - Surpresa?

- Não muito. -Ela disse, seu rosto cabisbaixo. - Destinos mudam.

- O seu me parece bem óbvio. - Eu guardei as cartas. - Mas acredite no que quiser. 

Pensei mentalmente em todos os arcanos, suas imagens se alternando na minha mente, as espadas, as chamas e os desenhos. Será que a minha vida já se destroçou completamente? Existe um limite claro de quanto um ser humano é capaz de aguentar até que a motivação saia de seu espírito por completo. Eu sabia o futuro e isso me trazia pouco consolo, saber que tudo vai ficar bem no final de alguma forma não me prepara para lidar com o presente, principalmente um presente tão repleto de dificuldades. Eu queria apenas uma fresta de luz, algo que me retornasse ao meu estado anterior de euforia e me lembrasse de ser a pessoa que eu sempre fui, mas eu não sabia se tinha alguma esperança de voltar para esse passado. Talvez a pessoa que eu era não existisse mais, talvez eu tivesse sofrido tanto que algo quebrou permanentemente dentro de mim. 

Eu acho que nisso eu me pareço com ela. O sorriso do seu rosto ia e voltava com uma rapidez que parecia mostrar as flutuações do seu humor, como se elas estivessem estampadas em seu rosto, as linhas subiam e desciam como um monitor cardíaco. Que comparação irônica de se fazer, agora que estou do lado de minha irmã, uma médica que sacrificou toda a sua humanidade. A vida melhora e piora infinitamente, uma sucessão de coisas boas e ruins nos atinge em uma velocidade em que podemos apenas tentar processar da melhor forma possível. Eu me lembrava de ser feliz. Eu me lembrava da parte da minha vida em que nada seria capaz de me derrotar. Eu conseguia conjurar a felicidade na visão da minha mente como uma flor amarela na primavera, e ainda assim meu corpo parecia petrificado de frio. Os humanos são seres determinados, e essa determinação a própria coisa que segura seu corpo junto, os nervos a pela e a carne são ligados exclusivamente pela nossa vontade de viver. Mas ela estava caindo para fora de mim como se o meu sangue estivesse indo embora. 

Em algum nível é como uma espécie de amadurecimento, mas eu simplesmente não consigo analisar se sou forte o suficiente para lidar com tudo isso. Se eu parar de acreditar em mim a minha vida vai se desfazer tão rapidamente quanto meu corpo morreria sem oxigênio, ainda assim, não consigo conjurar o que eu preciso para me manter em pé. Ela sempre foi o sol, a chama divina que queima dentro de todos nós. Ela sempre me disse que eu tina uma chama bem grande, que meu coração queimava ainda mais brilhante que o de qualquer outra pessoa. Mas eu não me preparei para a chuva. Como eu posso achar força no meio de tanta umidade, como o meu corpo pode ter qualquer esperança de calor quando raios e trovões cortam o céu dessa noite fria? Eu sabia o que eu precisava achar motivação de algum lugar, mas isso sempre foi muito mais fácil de dizer do que de fazer. Existe algum compartimento secreto? Talvez uma porta dentro do meu coração me leve para uma sala cheia de madeira seca. Eu precisava encontrar alguma forma de me manter quente enquanto o frio me puxava. A sacerdotisa me encarava do topo do baralho, seu semblante confiante me dizia que ela era o tipo de pessoa que não tinha medo de nada. De alguma forma eu precisava ser assim, de alguma forma eu precisava me segurar no que eu tinha. Deixei a força arcana da carta assoprar em mim um bafo quente, e então, eu acendi o fogo.


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