Troca

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A minha vida em perigo, essa é uma situação que eu consigo lidar com certa facilidade. Não é que eu queira morrer, mas eu nunca pensei sobre o assunto com muita tristeza. Talvez porque a morte andasse sempre comigo de mãos dadas, seu rosto gelado sempre me pareceu mais leve, suas promessas eram boas, nunca mais sentir dor, nunca mais sofrer, deixar de existir por completo. Mas eu nunca havia me rendido, e sempre mantive minha resolução de sobreviver. Mesmo nos momentos em que seu empuxo era forte, e eu sentia que minha vida não era importante o suficiente para justificar me manter. Mas em todos esses momentos eu sempre pude escolher, eu vivo porque eu quero, minha permanência nesse mundo é algo voluntário, e em qualquer momento que eu me sentisse insatisfeito, poderia sair por trás do palco. Mas como me retirar por trás, quando o palanque era todo meu? A mesa estava posta, uma morte gloriosa que salvaria todos, e ainda assim, eu corri em desespero.

Esse tempo todo eu me enganei, escondi sentimentos que eu não sabia que tinha, e a própria ideia de deixar de existir me pareceu tosca e assustadora. Eu queria correr, fugir, fazer todo tipo de coisa covarde que me manteria vivo, mas eu sentia dentro de mim o meu sangue dilatando as veias, os músculos se enrijecendo com o desejo de viver. Eros corria na minha frente, seu rosto tranquilo denunciava que ele não tinha noção nenhuma dos horrores que nos cercavam, as armaduras metálicas que tinham vida própria, o enorme pássaro escuro que voava em nossa direção, o próprio lugar, congelado no tempo, era o cenário de um pesadelo. E ainda assim, eu sabia que era real, algo rápido, pouco explicado e complexo, como ser jogado em um tanque de água fria. Mas eu precisava lidar com tudo isso, essa era a minha missão, o meu propósito. 

Enquanto o pássaro se preparava para atacar, uma armadura se aproximou e fincou uma lança enferrujada no chão, puxei Eros rapidamente e vi seu rosto tremer quando finalmente percebeu o cenário em que se encontrava, sua mente subiu, se precipitou, e eu sabia que ele pensava em Nyx, seja lá onde ele esteja, ele estava longe e ela em perigo. Então, como se nunca tivesse existido, Eros desapareceu, deixando nada em seu lugar. A ave continuou, cada vez mais perto de mim com seu bico sujo de sangue, seus olhos se fincaram em mim quando ela parou na minha frente, ela encostou no meu peito de forma suave, dócil, e o vento que assoprava me jogou para trás, direto para a realidade. Abri meus olhos confuso, Cere estava em cima de mim, se olhar ansiosa abrigava muitos sentimentos que eu já conhecia, o medo da morte, o luto, o desespero.

Foi como acordar no meio de um sonho, algo parecia mal feito, estranho, como se uma história estivesse sendo contada pela metade. Todo o cenário foi criado, o pássaro, as armaduras, o antiquário, tudo estava perfeitamente ajeitado para um final. E eu novamente estava jogado no meio de algo que eu não entendia, com o gosto amargo na boca de não entender nada, de me sentir perdido e aliviado, vivo ainda no meio de tudo. Os pedestais estavam quase todos vazios, todos que acordavam já se colocavam de pé, se dirigindo para a enorme porta como se puxados por um fio magnético. A única pessoa que se mantinha deitada era Marcos, o sangue pingava de seu corpo para o chão, suas respirações eram quase inexistentes e ele não se mexia. Era como se estivesse apenas esperando seu momento final.

— Precisamos fazer algo. — Eu me levantei rapidamente. 

— Não tem jeito. — Cere falou entre lágrimas. — Ele já está morto.

— Não, ele está respirando, eu sei que sim. — Cheguei ao seu lado. — Tem que haver alguma maneira. 

— É inútil. — Cere continuou. — Não temos como fechar a ferida, ele não vai aguentar.

— Do que você está falando? — Eu me virei. — Nós temos uma médica.

— Sim. — Calto se aproximou. — Por enquanto vocês tem.

Ela andou até nos, cada movimento era doloroso, como se ela estivesse em uma constante luta contra si mesma, algo parecia estar puxando sua cabeça para trás e para os lados, mas mesmo assim ela se aproximou, cortou o tecido em volta da perna e se empenhou em fechar a ferida. Não consegui entender de onde ela tirou gazes e luvas, muito menos o material para suturar o enorme corte que tinha dilacerado o músculo da perna, mas ela conseguiu com uma rapidez sobrenatural estancar todo o sangue e reduzir os estragos a uma linha que subia de seu joelho até a coxa. Quando terminou, sua expressão era pálida, seus passos cambalearam em direção à porta, o único lugar que prometia respostas para todas as nossas dúvidas.

— Marcos. — Cere o acordou com um sorriso. — Você consegue se levantar?

— Eu posso te ajudar a andar. — Eu falei. — Você está seguro agora.

— Eu morri. — Ele disse rapidamente com os olhos fechados.

— Calto te salvou. — Cere explicou. — Você não vai morrer. 

— Eu vou sim. — Ele sussurrou. — Esse é o meu fim.

— Marcos. — Eu levantei seu tronco. — Você não é mais o sacrifício.

— Eu não acredito nisso! — Ele se levantou irritado. — Porque? Não havia nenhum bom motivo para me salvar. Agora alguns de vocês vai morrer uma morte estúpida.

— Nós vamos resolver o sacrifício de outra forma. — Cere o acalmou. — Não se preocupe com isso.

— Eu estava totalmente pronto. — Ele se levantou mancando. — Era pra ser a minha morte gloriosa, o meu grande momento.

— Não se preocupe. — Eu disse enquanto o segurava. — Você vai poder morrer outra hora.

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