O Jogo

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A queda foi rápida, mas ainda assim eu sentia que estava debaixo da terra. Talvez esse mundo funcionasse de uma forma diferente, mas as semelhanças eram muitas para não parecer tudo uma grande coincidência. Pelo som que fazia, eu parecia estar cercado de gesso, me concentrei em tentar entender as texturas no silêncio, conseguia  ver o material compacto e frágil me cercando, e em breve consegui entender seus contornos. Esse mundo era escuro de tal forma, que ao olhar para aquelas paredes escuras eu me sentia encarando o vazio, como se fossem de um preto tão profundo que parecia engolir as luzes em volta. Posicionei minhas mãos na parte que acreditava ser a mais fraca da estrutura e arrisquei apertar com força, com o peso do meu corpo ela tremeu, mas se manteve firme, eu iria precisar de mais do que isso. Com os punhos fechados eu atingi a parede no mesmo ponto repetidas vezes até que ela se abriu com um estalo, o lado de fora coberto por uma luz de aparência sintética.

Pisquei meus olhos tentando me adaptar ao que estava acontecendo, o lado de fora era de terra com alguns pedaços de grama, a lua vermelha se destacava em meio ao céu estrelado e lâmpadas altas e retorcidas jogavam seu brilho amarelado em cima de estruturas de pedra lisa. Ainda era escuro mas eu sabia que eram feitos de mármore. A sensação que eu tinha era ruim, como se algo do meu passado estivesse se precipitando pelo meu pescoço e gelando a minha espinha. Passei tanto tempo da minha vida me escondendo em sofrimento, e nos primeiros momentos que eu tinha com a minha mente clara, eu era assombrado por esses fantasmas, esses pedaços de tristeza e dúvida que se agarravam á mim como farrapos de roupas velhas. Respirei fundo e olhei para cima apertando os olhos, a lua se transformou em uma mancha e depois se separou em duas, elas se separaram e depois se uniram conforme eu apertava as pálpebras. O cheiro era de terra molhada e podridão.

Os vultos brancos nas estátuas pareciam dançar separadamente em seus altares, os corpos gélidos se tornavam bestiais com as luzes vermelhas, seus contornos e roupas esvoaçantes parados no tempo como se estivessem congelados. Era um cemitério. O chão embaixo parecia mole, como se fosse ceder debaixo dos meus pés e me derrubar novamente para um nível ainda mais baixo. Tentei entender as coisas escritas nas lápides de formato hexagonal, mas as letras gravadas na pedra não pareciam com nada que eu havia visto antes. Qual o propósito deste lugar? Por que eu? O cheiro metálico da terra me dominava, querendo me submeter a um estado de letargia, me enterrar nesse lugar úmido e parado para que eu nunca mais me manifeste. E eu aceitaria, em outro momento talvez, eu aceitaria. Mas eu não era capaz de parar nesse momento, eu precisava me movimentar mesmo que eu tenha que me arrastar em direção á algo. 

O som da pedra atingiu meus ouvidos e minha cabeça doeu como se estivesse sendo esmagada, o som era pesado e contínuo e me levou para dentro do cemitério, eu pisei com dificuldade por entre as enormes estátuas e terra molhada e senti cada vez mais o chão cedendo. Os meus pés estavam envoltos em terra, olhando para frente eu via as estátuas se tornando cada vez maiores e mais deformadas, rostos se tornando feras que gritavam e se contorciam, não mais dançando e sim fugindo em horror. As estátuas e lápides eram tão grandes que eu me senti entrando em um labirinto de proporções titânicas, cada vez mais afundado na lama e guiado somente pelo grito da pedra. Finalmente atingi algo diferente, senti meus braços encostarem em algo de madeira, uma porta larga e cheia de musgos e plantas queimadas ficava entre eu e o som.

A porta era dupla, duas maçanetas de um branco pálido se ondulavam como os bigodes de um dragão, sua madeira escura era apodrecida e velha, como se tivesse centenas de anos de idade. A porta dava para uma espécie de mausoléu, o cubo de mármore se afundava na terra, as portas estavam inclinadas em um ângulo estranho e eu tive que me ajoelhar para tentar forças às portas. Mal tive tempo de segurar as maçanetas quando uma pesada chuva começou a cair, as gotas grossas caíam em sequência em cima de mim, encharcando meus cabelos e me gelando até os ossos. Eu preciso abrir essa porta, nem que seja a última coisa que eu faça. Minhas mãos puxavam e empurravam tentando identificar como entrar nesse maldito mausoléu, e eu só pensava que não poderia morrer debaixo da chuva e enterrado na lama. Nada no mundo parecia ser capaz de mover aquelas portas, e eu senti as poucas esperanças que eu tinha serem escorridas junto com a água.

A lama estava chegando até a minha cintura quando finalmente a porta cedeu, a força que eu fiz foi tão brusca que apenas a ausência da chuva me fez perceber que estava caindo, rolei pelo declive do mausoléu até atingir o chão. Deitado olhando para cima eu senti as gotas de chuva entrarem pelas portas e a terra atingir o meu rosto. Quando me levantei percebi que de alguma forma o chão que eu estava, apesar de ser completamente reto, era paralelo ao chão de forma que eu estava andando em uma parede. Os lados eram iluminados por tochas retorcidas semelhantes aos postes e eram cobertos por túmulos brancos de tamanhos que variavam imensamente. Alguns deles eu conseguia tocar com a ponta dos dedos, sua superfície lisa e gelada era manchada de verde e cinza, alguns pareciam ser pequenos o suficiente para guardar uma criança, enquanto outros pareciam ter três vezes o meu tamanho. Essa sucessão de formas continuou infinitamente para frente, girando e subindo em direções estranhas. Aqui embaixo o tamanho das coisas parecia alterado, e de alguma forma, as paredes e o chão não eram diferenciadas, era como se a gravidade tivesse parado de funcionar.

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