Planejamento

3 2 0
                                    




Que sensação estranha. Ela jamais havia me preparado para isso, com todos os seus anos de bons conselhos e lições, ela não me preparou para esse momento tão importante. A verdade é que era um pouco frustrante, de que me adiantava saber o futuro, se eu ainda tinha que decidir como agir? Eu precisava saber um pouco mais do que eu sabia. Quando você me escreve em um livro que o amor da minha vida vai entrar pela porta, o que eu devo fazer com isso? Como eu vou fazer ele virar o amor da minha vida? Como isso funciona para começo de conversa? Tia, ou devo dizer, mãe, como eu posso fazer isso sem você comigo? Eu me sentia menos sozinha, isso é verdade, mas nenhuma parte da confiança que eu exalava fazia jus aos meus sentimentos. Ele parecia tudo e nada ao mesmo tempo, seus cabelos loiros macios estavam em perfeita desarmonia, assim como suas roupas, um pouco largas demais. Seus olhos eram cansados, mas pareciam ser de uma determinação extraordinária, como se ele escondesse uma força capaz de destruir tudo que tocasse, e ainda assim ele segurava um pequeno gato preto com o carinho de uma criança.

- Com licença. - Ele sorriu envergonhado. - Você parece me conhecer, mas eu não te conheço.

- Sim. - Eu me aproximei rapidamente. - Eu estava te esperando.

- Bom, muito obrigado pela recepção. - Ele se sentou. - Mas acredito que a pequena Nyx precisa de mais ajuda do que eu.

- Que coincidência, minha tia se chamava Nyx. - Estendi a mão para a gata. - É um nome bonito.

- Eu gostaria de saber o seu. - Ele disse. - Se você estiver disposta.

- Me chamo Cere. - Falei olhando em seus olhos. - E você se chama Mica.

- Agora não estou mais em desvantagem. - Ele olhou em volta. - Você por um acaso é uma vidente?

- Algo do tipo. - Falei enquanto procurava algo pela loja. - Se você acreditar nessas coisas.

- Cere, eu acho que sou capaz de acreditar em tudo que você me disser. - Ele fechou os olhos. - Faz muito tempo desde que eu converso assim com alguém.

- Aqui! - Limpei o objeto com carinho. - Achei o que você procura.

Ele abriu os olhos em um impulso como se estivesse atrás de algo muito mais profundo, me olhando como se eu fosse a resposta para algum problema complexo que ele havia construído nos confins da sua mente. Eu lhe estendi uma pequena coleira azul e ele rapidamente colocou ela na gata, que com seu corpo pequeno subiu em cima do balcão e começou a ronronar depois de ser devidamente alimentada e limpa. Seus pelos molhados se espetavam em várias direções, seu peito levantava lentamente conforme seu pequeno pulmão se enchia de ar, era uma visão muito serena. Depois que paramos de cuidar da pequena Nyx, fui atingida pela realidade de lhe contar as coisas escritas no caderno, por mais absurdas que pudessem parecer para ele, e esperei que sua atitude cordial se transformasse.

Conforme eu falava, senti meu rosto se encher de lágrimas, tentando fazer sentido de tudo que eu havia lido, e ao passar tudo para um estranho, me senti totalmente fragilizada e sozinha, como alguém gritando no silêncio, sua voz encontrando o vazio. Eu queria acreditar que sua expressão séria significava algo, mas a cada momento eu esperava que ele iria rir de mim ou ir embora inconformado. De alguma forma, toda a minha crença dependia de sua reação, e como ela poderia ser boa? Eu estava lhe contando coisas absurdas e tenebrosas que iriam desregular e bagunçar sua vida.

Quando terminei, consegui atingir uma postura mais calma e aguardar sua reação. Se ele saísse por aquela porta, eu poderia tentar acreditar que nada disso foi real, e que minha tia tinha se enganado uma vez. Mas quanto mais o tempo passava e ele permanecia imóvel, mais a outra possibilidade crescia, de estarmos lutando contra um futuro terrível sem nenhuma ajuda. Sua expressão de repente se tornou mais suave, ainda que um pouco confusa.

- Deve ter sido muito solitário lidar com tudo isso sozinha. - Ele me deu um sorriso de simpatia. - Mas eu estou aqui agora, e iremos pensar em algo.

- Mas o que poderíamos fazer agora? - Perguntei ansiosa. - As instruções acabaram.

- O que sua tia faria nesse momento? - Ele perguntou.

Bom, havia uma coisa que minha tia fazia sempre que perdia seu caminho ou não sabia como agir diante de uma situação, mas era algo que eu nunca havia feito com perguntas tão graves e complexas. Eu precisava de algo que me desse respostas menos crípticas. Ainda assim, sentei na mesa e acendi as velas, pegando seu velho baralho entre as mãos, de alguma forma parecia que tinha ela comigo enquanto tocava aquelas cartas velhas.

- Comece com algo mais simples. - Ele sugeriu.

- Algo mais simples? - Eu pensei. - Podemos ver o seu futuro.

- Como fazemos isso? - Ele respondeu animado.

- Escolha duas cartas e as coloque na mesa em qualquer posição. - Estendi o baralho para ele.

Ele tirou a carta de cima do baralho e rapidamente a colocou na mesa. Ela parecia grande, muito maior que uma carta de baralho, e enquanto estava virada para baixo, parecia muito mais ameaçadora em seus segredos e possibilidades. Ao pegar a segunda, seus olhos brilharam, e ele a virou em muitas direções, sem nunca parecer se decidir em uma. A carta girava contra o tecido roxo, como uma bússola tentando achar o norte. Finalmente, ele parou, colocando as mãos no colo e esperando com expectativa minha resposta. Abri a primeira carta tremendo, e me deparei com a roda da fortuna, seu circulo dourado representando o destino. Seus olhos examinaram o nome e ele pareceu confiante com a ideia. Quando abri a segunda carta, sua expressão se tornou mais grave quando se deparou com os raios e pessoas caindo. A torre se desprendia do chão, pessoas em pânico caiam de suas janelas, o caráter invertido da carta tornava tudo ainda mais grotesco, como se elas estivessem caindo para cima, suspensas no ar eternamente.

- O que isso quer dizer? - Ele me perguntou.

- Bom, a torre na posição invertida simboliza que ... - Fui interrompida por um barulho de sino.

Diante da porta escancarada, o mesmo homem que havia rondado a loja antes, agora estava de pé com sua confiança reforçada. Ele me encarou com seus olhos perdidos e deu uma respiração profunda em preparação para dizer algo.

Sete NósOnde histórias criam vida. Descubra agora