Pacto

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Tentei abrir meus olhos, mas não conseguia. Depois de gritar e correr, ele me alcançou e me derrubou com um único golpe, me colocando em um estado profundo de sonolência. Era como se minha alma estivesse sendo arrancada com um garfo. Algo muito poderoso estava entrando na minha mente, e a dor era insuportável. Senti o meu cabelo ser puxado com força, arranco fio à fio junto com minha pele, algo pareceu entrar pela minha orelha, em um misto de pressão e dor aguda que me fez querer gritar em desespero, mas eu era incapaz de reagir. A dor subiu pelo meu nariz e por trás de meus olhos, que pareciam querer saltar, as veias se dilatavam e rasgavam junto com o osso, a pele e os nervos. Até que por fim, tudo parou, e eu estava bem novamente. O que havia entrado na minha mente não era uma ideia ou um pensamento, e sim, outra pessoa.

— Você me trouxe de volta Haan. — Nós dissemos. — Obrigado.

— Eu não consegui sem você. — Ele falou feliz. — Preciso de sua ajuda.

Fraco, terrivelmente fraco. As memórias voltaram para mim aos poucos, desde o primeiro dia que eu o encontrei, caído no chão no meio do fim do mundo como um inseto indefeso, ele se agarrou a mim como se eu fosse sua única chance, e eu era. Eu era sua única corda, o único ser capaz de tirar ele de sua existência patética e inútil e o converter em algo que seria importante para os nossos. Soldados no campo de batalha, cada um deles um soldado raso, e Haan não era diferente e sabia disso. Por qual motivo ele iria me trazer de volta? Eu que era seu general, superior a ele em todos os quesitos, fisicamente e intelectualmente mais forte. Mas eu estaria mentindo se se dissesse que não sinto afeição por ele, talvez, como um dono ama seu animal fiel, era conveniente que nesse momento ele era um animal, buscando entre meus dedos as migalhas que precisava para se alimentar.

Era engraçado, nós que fomos feitos para a luta não temos descanso em nenhum momento. Minha última memória era a de ser destruído no campo de batalha, meu corpo se tornando nada menos do que uma casca enegrecida do que era antes, e agora, havia retornado ao que pareciam segundos depois, mas eu sabia que se tratava de outra batalha, contra outros oponentes. Humanos. Eu já havia os confrontado antes, e havia perdido. Minha única derrota ainda manchava meu coração como uma humilhação constante, duvidei de suas capacidades da mesma forma que Haan, e depois de ser enganado e traído, morri em confronto, perdendo mais um pedaço do meu mundo para o abismo que era sua terra pacífica.

Eu sentia um profundo desgosto, uma raiva absoluta. Eu que era de uma raça tão forte, tão inteligente e tão conhecida dos segredos do mundo. Eu que diferente dele, não era um soldado raso, e sim um general condecorado, treinado e envelhecido nas artes bélicas, o conhecedor de mundos, o destruidor, o único entre os deuses. Os humanos me conquistaram com sua conversa fácil, seu jeito esperançoso de acreditar que as fendas poderiam ser consertadas sem destruição e de forma pacífica. Por anos confraternizei com eles, comi com eles, me relacionei com eles. Acreditei que seríamos como irmãos, como família, e tentamos dia após dia resolver a ferida no universo e poupar nossas vidas. Mas a corda sempre pende pro lado mais fraco, e com o tempo, a fenda começou a adoecer nosso povo com sua podridão, e eu precisei agir.

Um incêndio foi a forma que encontrei de eliminar os humanos que iam contra os meus planos, Haan estava do meu lado, incapaz de reagir diante de tanta destruição. As mortes foram suficiente para suturar um pouco a ferida, mas a fenda se abriria novamente dentro de alguns anos. E foi com esse pensamento fixo na mente que eu morri, deixando apenas Haan com a missão de reparar meus erros. Mas eu sabia que ele não seria capaz, os humanos são muito traiçoeiros e suas línguas ferem como facas. Todo cuidado é pouco para lidar com esses seres inferiores.

Tentei me lembrar de tudo que havia aprendido, todas as lições e conhecimentos, como funcionavam suas mentes e suas personalidades. Ajudava que nesse momento eu dividia um corpo com uma humana, mas seu terror profundo a deixou presa dentro de minha mente, escondida e assustada. Eu precisava me lembrar. Os humanos viviam vidas curtas, isso era óbvio, e eram obcecados com o passado, cultuando deuses antigos e civilizações perdidas. Isso sempre foi motivo de fascínio para mim, meu povo sempre cultuou o mesmo deus desde sempre, sem desavenças ou questionamentos, quando contei para os humanos sobre isso eles acharam igualmente fascinante. Para eles, o que seria mais próximo do nosso deus seria algo chamado Cronos, o nome que eles me deram já que o meu verdadeiro era impronunciável. Haan nunca gostou de me chamar de Cronos, ele sempre sentiu muita falta de nossa vidas antigas, mas eu jamais fui de me agarrar ao passado.

— Me conte tudo que aconteceu Haan. — Nós falamos. — Enquanto ela se esconder, não lembrarei de nada.

— Como quiser mestre. — Ele respondeu obediente. — Os humanos estão todos aqui, passando por seus testes nesse momento. Esse grupo é especialmente ruim, eles são arrogantes e corajosos.

— Me leve até eles. — Nós ordenamos. — E me diga, qual era o nome dela?

— Calto. — Ele abaixou a cabeça. — Ela buscava conhecimento e poder.

— Certamente são coisas que ela encontrará bastante em mim. — Nós rimos. — Ela parece ser alguém inteligente.

— Ela é. — Ele me encarou. — A humana mais inteligente que conheci.

— Muito bem. — Senti ela vibrar em aprovação. — Nos chame de Cronos.

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