Sem sentimentos

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Kaiser passou o caminho até a base em silêncio, olhando de relance para Joui a cada momento como se pudesse mudar de novo de repente, mas ele apenas olhava para frente, perdido em pensamentos. Sentia-se péssimo por estar fazendo daquele primeiro dia de retorno algo bagunçado, mas queria se certificar de que ele estava bem e entender a situação, pois caso fosse realmente algo maior, não queria perder tempo e começar a agir quando fosse tarde demais.

Ao chegarem em seu destino, seguiram direto para a ala médica, passando por entre o salão quase vazio até encontrarem Marcela com o olhar cansado de sempre apoiada no balcão.

— Oi, gente. Bom te ver de novo, Joui — cumprimentou, dando um sorriso. Parecia não estar prestes a dormir dessa vez.

— Bom te ver também — Joui respondeu, se aproximando.

Kaiser apenas acenou, colocando as mãos nos bolsos.

— Desejam algo, meninos? — continuou, os analisando de cima a baixo em busca de ferimentos.

— Na verdade, sim. — Trocou um olhar rápido com o japonês, que parecia hesitante. — Como você sabe, eu tinha ido até o Japão, mas acho que algo aconteceu enquanto eu tava lá ou no caminho pra cá, não sei direito. Aparentemente, eu... mudo. Falo e faço coisas que não me lembro depois. Aconteceu duas vezes hoje.

— Eu vi as duas vezes acontecerem — Kaiser completou —, não parecia outra pessoa, era o Joui, mas diferente.

Marcela ajeitou a postura, desencostando-se do balcão.

— Diferente como? — questionou, olhando interessada para Joui.

— Ele não reconhecia... isso — Kaiser apontou para o próprio rosto —, disse que não ia ao Japão fazia mais de um ano, me chamava de outro jeito, os nomes que ele citava também.

— Eu nunca vi nada assim — Marcela confessou —, pode ser resultado do cansaço, estresse pós-traumático das missões vindo à tona, injeção de alguma substância, é difícil saber. Vamos tirar um pouco do seu sangue pra analisar, ok? Fazer uma checagem e ver se tá tudo certo. Vou pedir uma ajuda pro Renan também e assim que possível chamo vocês pra mostrar o que achei.

— Obrigado — agradeceram ao mesmo tempo.

— Joooui! — A voz alegre de Arthur gritando do salão é ouvida.

— Eu já volto — Joui falou sorrindo, e se virou, caminhando para ir se encontrar com o amigo que não via há três semanas.

Kaiser continuou no mesmo lugar, aguardando pela saída do japonês. Quando enfim estava longe o bastante para não ser ouvido, se inclinou um pouco sobre o balcão.

— Ei, Marcela — chamou, abaixando o tom de voz —, eu não quis contar isso pra ele, mas ele também falava sobre a Elizabeth e o Thiago, como se eles ainda estivessem... você sabe.

Não gostava de esconder coisas de seus amigos, mas temia fazê-lo sentir-se chateado pelas memórias ou acabar dando falsas esperanças de algo que era impossível acontecer. Odiava vê-lo mal, ainda mais se fosse por sua causa.

A médica olhou para Joui por um momento à distância, apertando os lábios antes de voltar o olhar para Kaiser.

— Como eu disse, pode ser estresse pós-traumático, e essa não é bem a minha área — respondeu, escolhendo as palavras com cuidado. — Eu vou fazer os exames pra garantir, mas ele já passou por muita coisa, você sabe disso melhor do que eu.

— Eu sei. — Suspirou, sabia que era provável que fosse essa a situação e sentia-se arrependido pela forma grosseira que o tratou no caminho até a base. — Obrigado de qualquer forma.

— Faço o que posso. — Ela sorriu, cansada.

Virou-se, indo se encontrar novamente com Joui e Arthur, que conversavam animadamente em uma das mesas. Ambos sorriam, mas o sorriso do japonês capturou imediatamente seu foco, radiante, lindo. Único.

Ele merecia ser feliz, sorrir mais vezes. Kaiser sempre tentava ajudá-lo nisso, mas agora estava mais determinado do que nunca para animá-lo. Apenas o queria bem, por mais que não soubesse ao certo como se sentir bem em primeiro lugar. Ele tentaria.

Se aproximou da mesa, sentando-se junto com os amigos e entrando na conversa, tentando acreditar por um momento que tudo estava perfeitamente bem, mesmo quando sabia que poderia não estar.

Não ficou muitas horas no local, apenas o suficiente para passar um tempo com eles e acompanhar os exames de Joui, que teriam os resultados divulgados em alguns dias. Seguiu de volta para o apartamento sozinho, na companhia apenas de seu cigarro. Precisava pensar.

"Desde quando você fuma?", não soube como responder, o hábito apenas foi fazendo parte de sua vida, mas não era um vício. O gosto continuava horrível, havia apenas se acostumado a ele. No fundo, sabia que fumava apenas para poder se lembrar de Thiago mas sem, de fato, lembrar dele. Ter uma parte dele consigo, mas não pensar nele, nem em sua morte ou naquela missão. Apenas tê-lo presente de alguma forma.

Era assim que lidava com tudo – não pensava a respeito, mas também não esquecia. Fugia da dor, ou ao menos dizia a si mesmo que estava fugindo, quando na verdade a sentia tão viva dentro de si que aquilo seria capaz de o consumir se um dia se permitisse ser consumido.

Às vezes ele queria.

Esperava que Joui não tivesse esse tipo de pensamento dentro de sua mente, ele não sabia que Kaiser tinha. Não contaria. Há muitas coisas que nunca contou, seja pela falta de palavras para explicar, por receio ou pelo medo de receber um olhar decepcionado em resposta. Não gostava de esconder nada disso, mas também não queria jogar tantas coisas assim de repente nele, como uma granada.

Riu baixinho para si mesmo com a comparação, ao mesmo tempo em que sentia uma lágrima caindo. Secou-a com a manga do casaco rapidamente, parando de andar por um momento. Olhou para o céu, estava sendo coberto de nuvens escuras aos poucos, uma leve brisa anunciava a chuva que viria. Jogou o cigarro numa lixeira próxima, apertando o casaco ao seu redor e voltando a caminhar, sem o cigarro, sem lágrimas, sem pensamentos incômodos ou sentimentos.

Vazio.

Aquilo que o completava estava na base, longe.

Na rua deserta, mesmo com nenhum olhar questionador para si, andou de cabeça baixa, concentrado apenas em chegar logo em casa, não queria ser pego pela chuva e ficar com frio.

Meu amor me guia até vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora