Com todo o coração

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O sofá da sala não era muito grande, então os quatro residentes do apartamento — ainda cobertos de pó de chocolate e ignorando completamente esse detalhe junto da casa igualmente suja — se encontravam no chão em frente a ele em cima de uma pilha de cobertas mais velhas e travesseiros, dividindo um pote de leite condensado e algumas barras de chocolate enquanto esperavam o bolo de sorvete esfriar, o que causou muito tumulto ao lerem no final da receita que isso levaria pelo menos um dia, especialmente da parte de Arthur. Na televisão, um filme sobre um rato cozinheiro passava e o ambiente estava pacífico, um sentimento de calma tomava conta daquele momento.

— Achei que fosse ser mais rápido — Arthur murmurou, sentado em um dos cantos com Jeniffer em seu colo, acariciando-a.

Kaiser sorriu e revirou os olhos, já sabendo o que estava por vir. Deixou seu corpo escorregar um pouco mais, praticamente deitado no chão mas ainda com os ombros encostados no sofá. O japonês sentado ao seu lado lançou-lhe um olhar indignado, apontando para sua postura e reclamando algo sobre dor nas costas antes de se inclinar um pouco para frente para poder olhar o guitarrista do outro lado.

— É um bolo de sorvete, Arthur. Ele precisa estar frio — Joui explicou pela terceira vez.

— Na próxima vou pedir um de chocolate — respondeu, fazendo biquinho.

— Tudo o que você quiser, amigo — continuou, tentando consolá-lo embora um sorriso estivesse presente em sua face pela reação dramática do outro.

— Arthur, tu vai ficar doente comendo tanto doce assim — Ivete alertou, se debruçando para roubar a barra de chocolate que Joui segurava, pegando alguns pedaços para si.

— Ah, olha quem fala — Arthur retrucou, repetindo a ação da mais velha e tomando o doce de suas mãos, dando uma mordida.

Joui abriu a boca para se pronunciar a respeito do roubo, mas simplesmente mudou de ideia e permaneceu em silêncio ao ver o guitarrista também pegar o chocolate. Virou-se para Kaiser, olhando-o com uma expressão de quem diz "isso já nem me surpreende mais". O programador ergueu um dos dedos e o colocou sobre a própria boca em um sinal de silêncio e então puxou uma barra intacta que estava escondida sob as cobertas. Entregou-a para ele e piscou um dos olhos, quase como alguém que estaria entregando algo precioso para outra pessoa sem que ninguém pudesse perceber. Joui sorriu — mais uma vez, Kaiser sorriu imediatamente de volta — e abriu a embalagem silenciosamente, pegando uma fileira e a partindo ao meio, entregando a outra metade para Kaiser e então apontando com a cabeça para si mesmo. Revirou os olhos ao notar seu olhar confuso e o puxou até si, deixando-o com o corpo apoiado no seu, lado a lado.

— Você vai ganhar dor nas costas e sua postura já me preocupa o suficiente — justificou, passando um dos braços atrás de si, deixando-o apoiado no sofá.

Kaiser, sem nem questionar muito a situação, simplesmente aceitou e se aconchegou melhor no corpo do outro, assistindo o que passava na televisão mas sem realmente prestar muita atenção. Olhou para o lado, encontrando Ivete abraçada a Arthur enquanto acariciava o cabelo dele com uma mão e com a outra dava carinho em Jeniffer junto com ele, que agora estava deitada entre os dois dormindo, ambos assistiam o filme mas pareciam estar com tanto sono quanto ela. Olhou para Joui, que já estava olhando para si.

Observou atentamente sua expressão. Relaxada, calma. Os olhos serenos.

Outros olhos.

— Eu não entendo o porquê de vocês estarem tão sujos, mas fico feliz que estejam bem agora — ele disse, bem baixinho para não atrapalhar o sono dos outros dois mais ao lado.

— Não só a gente, você também tá bastante — respondeu no mesmo tom, apontando para o japonês.

— Eu percebi. — Olhou para baixo, a roupa ainda com vários resquícios marrons por toda a parte. — A gente pode conversar?

Kaiser assentiu, dando um último breve olhar a eles que enfim dormiam e se levantou com cuidado, acenando para ele o seguir enquanto ia em direção a seu quarto em passos leves. Fechou a porta quando os dois entraram, sentando-se na beira da cama, Joui fazendo o mesmo.

— Eu ainda não sei tudo o que aconteceu por aqui, mas conversei sobre o que vocês me contaram com todo mundo e a gente tem algumas teorias — Joui começou a contar, olhando nos olhos de Kaiser que, por algum motivo, não sentia dificuldade em sustentar o olhar com o seu próprio. — Eles pediram pra eu repassar alguns recados pra você também, se você não se importar em ouvir.

— Pode contar — respondeu de imediato, ansioso pelo que estava prestes a ouvir, embora se sentisse nervoso. Ouvir recados de pessoas que viu morrer era uma ideia aterrorizante, de certo modo, e ainda havia a possibilidade de seu pai estar entre elas. Era algo grande demais para ser capaz de permanecer totalmente calmo, mas continuou respirando do jeito que Joui lhe ensinara há um tempo, permanecendo no controle de si mesmo.

— A Liz-senpai acredita que existem universos paralelos e que as coisas acontecem ao mesmo tempo em todos esses universos mas não dos mesmos jeitos sempre. Você e eu aparentemente vivemos as mesmas coisas até um ponto, mas a história aconteceu diferente pra nós dois a partir dele, por isso que algumas coisas não são iguais daquilo que você e o Arthur-san me contaram que aconteceu aqui pra mim. Ela não entende o motivo ainda pra essa troca acontecer e nem porque ela acontece só comigo, mas disse pra eu te dizer que ela promete achar a resposta.

De fato, era bem o que Elizabeth diria em uma situação como essa. Kaiser quase podia vê-la analisando diversos livros e documentos sobre tudo o que encontrasse a respeito de tudo o que acontecia. Inteligente como era, ela realmente encontraria uma resposta.

Assentiu, sinalizando para ele continuar o que tinha a dizer.

— Thiago-sensei também tá ajudando na investigação, ele e a Liz quando não estão discutindo por lista de mercado ou se beijando em todos os cantos são uma dupla boa nisso, e ele acredita no mesmo que ela.

— Eles tão juntos? — questionou surpreso, definitivamente não esperava por essa notícia.

— Sim, em uma outra missão alguns meses depois da nossa primeira o Thiago-sensei chutou uma porta e acabou torcendo o tornozelo, na sala que ele abriu tinham dois zumbis de sangue que pularam em cima dele. A Liz-senpai conseguiu matar os dois e depois disso ela começou a dizer muitos nomes inapropriados pra ele enquanto colocava o pé de volta no lugar, mas ele só sorriu e beijou ela e ela ficou vermelha e não disse mais nada. No outro dia eles estavam juntos.

Kaiser sorriu, nunca pensou nos dois como namorados quando os conhecia mas eles formariam um casal bonito no fim das contas. Era bem típico deles começarem uma história de amor com Thiago chutando uma porta. As melhores histórias começavam com portas chutadas.

— Ele disse que agora vocês são irmãos de porta e de cicatriz. — Seu sorriso cresceu um pouco mais, mesmo em outra realidade eles ainda eram irmãos. — E que vai mudar o nome dele pra Skol um dia pra combinar.

Kaiser riu, acenando que não com a cabeça. Seu nome com certeza não era baseado em uma cerveja.

— Fala pra ele que eu sou bom em arremessar copos, também devo ser em arremessar latinhas — respondeu, soando tão como... o Cesar.

Há quanto tempo não se encontrava assim.

— Pode deixar. — Joui piscou, dando um sorriso. — E o senhor Cristopher...

Kaiser travou por um segundo. Olhou para o japonês atentamente, aguardando.

— Ele disse que não é culpa sua, não importa o que aconteceu, e que faria qualquer coisa pra proteger você em qualquer lugar. Ele disse que te ama também. Bom, ele gritou, na verdade. Você sabe como ele é.

Não era culpa sua. Cristopher disse que não era culpa sua. Disse que o amava. Seu pai o amava.

Cesar baixou o olhar, olhando para seu colo por um momento e uma lágrima caiu, um peso que o atormentava há tanto tempo finalmente tirado de seus ombros. Ergueu o olhar novamente, o sorriso não saiu de seu rosto.

— Obrigado, Joui — agradeceu com todo o seu coração e, sem dizer mais nada, se aproximou e o abraçou forte.

Seu pai o ama. Kaiser também ama ele.

Enfim poderia dizer isso de volta.

Meu amor me guia até vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora