HENDERY ⇾ Good days

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Hendery encarou a figura séria e pálida projetada na superfície do espelho chanfrado da cabine. Ele estava cansado e não sabia o que fazer. Seus únicos sentimentos eram solidão, desespero e talvez mais algum que pudesse explicar o porquê de ter gastado os últimos centavos que tinha na conta bancária numa aposta sem sentido na loteria. As chances eram patéticas, impossíveis, ele não podia ter cavado mais fundo a própria sepultura. E era por isso que encarava o espelho, porque o aluguel estava expirando e, a menos que quisesse parar na Ponte dos Desabrigados, ele teria de encontrar uma forma de conseguir dinheiro em pouco tempo.

Enxugou as mãos ao sair do banheiro, crente de que escutaria um noticiário na televisão informando a obrigatoriedade de se estender o prazo para pagamentos de aluguel. Era aleatório, tremendamente específico e, além do mais, também impossível. Mas manteve a esperança ao atravessar a lanchonete e encontrar seu prato ainda sobre a mesa do jeito que deixou ao sair. E assim que se sentou, olhou para fora por um instante, através do vidro lustroso, encarou o céu e viu uma mancha de um arco-íris estirada sobre a cidade. Viagem no tempo. Aquilo simbolizava uma viagem no tempo.

Há um século a humanidade havia descoberto a possibilidade de viajar temporalmente. A ciência não era a mesma do século XIX, tampouco da época digital. Não. Havia transpassado todo aquele sistema arcaico do antigo milênio. Agora a humanidade ocupava-se em consertar buracos e erros gravíssimos da espécie feitos há anos ou séculos atrás. Hendery, desde pequeno, assistia à parede-telão do seu apartamento como os filmes representavam todo aquele maquinário repleto de prismas e antenas. Aquela parafernalha tecnológica deixava manchas coloridas no céu, como se o arco-íris fosse um carimbo e sem querer caísse sobre o horizonte. A cada viagem, uma nova mancha. E parece que tinham descoberto tantas coisas ruins no presente, que agora o céu era colorido de tantas vezes que viajavam diariamente para consertá-las.

Pela pupila contraída, tímida pela luz, o céu colorido empenhava-se em refletir no rosto do jovem Hendery. Ele terminou a refeição com pressa, pois tempo era dinheiro. Lembrava-se de como apostara daquela vez: o ícone de uma casa, dois homens um ao lado do outro e, por fim, uma ampulheta. Há muito os números tinham sido abolidos como forma de aposta, eram limitados e facilitavam as chances de ter ganhadores. Então decidiu-se: ícones. Ícones seriam a nova forma de aposta. Eram inúmeros, incontáveis, qualquer coisa poderia ser um ícone. Uma televisão, um ventilador, um carro, um prédio, um sapato, um relógio, uma cadeira, um travesseiro, uma ponte, uma onda, o sol, uma mão, um bolo, uma montanha... Exatamente tudo poderia ser usado como ícone de aposta. Era simples: uma combinação com três ícones seria escolhida. Se fosse essa a sorteada, parabéns, o cidadão tinha o direito de pedir qualquer coisa ao governo. Qualquer coisa. Todo mundo queria qualquer coisa.

Eram tempos difíceis e sonhar era muito caro. Hendery queria uma nova casa, um novo par de sapatos, um novo emprego e, quem sabe, uma nova vida. Pensava em inscrever-se para jogos ou reality shows, pois as inúmeras competições poderiam lhe dar fama ou até mesmo lhe proporcionar uma bela quantia de dinheiro. Mas nada era assim tão fácil. E ele não tinha nada senão um cachorro para molhar a sua vida minguada de alegrias e celebrações. Por isso, deixou as botas de cano alto surradas na entrada do apartamento e deparou-se com o vira-lata marrom que pulava devido a sua chegada. Talvez aquele filhotinho que resgatara há meses de uma lixeira era, de fato, tudo que ele tinha naquele momento.

Provavelmente receberia seu salário na semana seguinte, poderia gastá-lo com o que precisava: aluguel, cachorro, comida e contas. Ele sentou no sofá encarando a parede-telão que estava sempre ligada, porque era impossível desligá-la: antes o barulho das risadas, trilha sonora e piadas alheias do que um silêncio mórbido que o fizesse desistir de tudo na vida. Haviam sido projetadas para nunca serem desligadas, apenas poderiam diminuir o volume. E assim Hendery o fez, já esticando o corpo sobre o canapé rasgado pelo tempo. Seu cachorrinho jogou-se num dos pés do móvel e ali ficou, como se já soubesse o que haveria em seguida.

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