O TREM SEGUIA em seu curso, sem nada em seu caminho. O frio impiedoso não era aplacado nem mesmo pelo grosso cobertor que sua mãe passou por seu ombro. A pequena criança – um garotinho de cabelos loiros, talvez com seus seis ou sete anos – rangia os dentes, enquanto seus finos bracinhos se agarravam com toda força ao cobertor amarronzado que envolvia seu corpo raquítico. Encarou sua mãe, a única parente viva que ainda tinha: sua inspiração e seu alento. Uma mulher alta, com cerca de 1,80m, usando alguns agasalhos aos trapos e o rosto bastante sujo. Seus cabelos estavam desgrenhados e, entre seus dentes amarelados, algumas falhas se faziam visíveis.
Ela agradecia a um soldado por lhe dar um pouco de pão e estava voltando ao encontro de seu pequeno filho. Ela havia saído, alguns minutos antes, acompanhada por aquele soldado, e ido para outro vagão. A criança não fazia a menor ideia do motivo, mas estranho a forma como a mãe retornara limpando os lábios inúmeras vezes, com lágrimas nos olhos, enquanto o soldado sorria em contentamento.
A mãe se abaixou e arrancou um pedaço do pão, dando para a criança.
— Aqui, meu filho... deve estar com fome – ela comentou, falando em polonês.
A criança voltou os olhos ao soldado uma última vez. O mesmo se apoiou numa das pequenas janelas do vagão e ficou encarando-os de longe, sorrindo. Algo naquele homem incomodava a criança. Algo relacionado à sua mãe. Mas não sabia o que era. Por fim, olhou para o pão e, com um grande sorriso, agarrou e mordeu um enorme pedaço. O pão era macio e tinha um leve gosto de mel.
Sorridente, a mãe ficou encarando seu filho dar algumas mordidas, antes de começar a comer o pedaço pequeno que pegara para si. Terminaram de comer no mesmo instante, mesmo que a criança tivesse a boca bem menor e estivesse com o maior pedaço de pão.
A mãe puxou o filho para perto e lhe abraçou, choramingando. Ela murmurava que tudo aquilo iria passar e que estariam bem em breve.
Por ela estar de costas para o resto do vagão, não viu o que a criança viu.
A cena havia sido rápida demais para que a criança processasse o que ocorreu, além da penumbra que tomava o vagão, ainda que o choque tivesse sido imediato.
Num instante, o soldado estava ali, lhes encarando com olhos ardilosos.
No outro instante, a janela atrás dele explodiu em milhares de pedaços e, em seguida, algo agarrou o soldado pela cabeça e lhe puxou com toda força, mesmo que o corpo do homem não passasse ali, o que resultou na cabeça do homem saindo pela janela destruída, enquanto o corpo caía decapitado no chão, sangue jorrando por todos os lados e banhando as pessoas ali entulhadas no chão.
No mesmo instante, tiros começaram a vir de todos os lados, as balas atravessando as janelas, enquanto os outros poucos soldados naquele vagão disparavam em uma gritaria cacofônica. As pessoas gritavam em puro pavor, agarrando-se umas às outras e se empurrando, na medida em que mais patas cadavéricas enormes atravessavam as janelas e agarravam as pessoas e também alguns dos soldados.
Sua mãe então lhe abraçou com força.
Muito mais força do que seria normal.
Muito mais força do que seria saudável ao corpo.
As costelas da criança pareciam estar prestes a se partir sob o forte abraço da mãe. A criança, murmurando em dor, ergueu o rosto para sua mãe, apenas para uma quantidade de um líquido quente e avermelhado cair em sua face e lhe cegar por um instante.
Sua mãe continuou abraçada à criança, mesmo depois de uma enorme garra cadavérica e pútrida atravessar a janela e enfiar as garras em seu crânio, lhe puxando para fora do vagão.
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A Fórmula do Inominável - VENCEDOR WATTYS 2022
Horror[VENCEDOR WATTYS 2022] 1920, Inglaterra. Dois anos após o fim da terrível Grande Guerra, Nolene Wilson - a primeira mulher a conseguir o cargo de investigadora na história da New Scotland Yard - e Jacob Wood - um dos poucos homens negros que trabalh...