Tanjiro V

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Foi a fome que o despertou. Mesmo quando humano, quando o rigoroso inverno tornava os alimentos uma raridade e ele se mantinha apenas a base de chá, deixando sua parte para os irmãos mais novos, em uma fraca tentativa de poupa-los. Mesmo então, ele nunca sentiu como a fome de um oni. Não era atoa que muitos perdiam por completo a sanidade, tornando-se bestas estúpidas.

Os séculos o ajudou no controle, a repulsa por si mesmo, foi outro grande incentivo. Mas sempre que Muzan compartilhava seu sangue, era como se tornar um recém-criado novamente. Sua mente era tomada pela lembrança do sabor da carne, do sangue deslizando quente em sua língua, fazendo seu corpo se encher de energia. Tentar não sucumbir, tornava -se uma batalha feroz.

Ele respirou pela boca, certo de que qualquer cheiro meramente humano, tornaria tudo pior. O barulho de passos o alertou, ele forçou o corpo a erguer-se, seus membros parecendo desajeitados, como se não fosse o mesmo.

Tanjiro não fazia ideia de onde estava, poderia ser qualquer lugar. Se ele estivesse em uma cidade ou povoado de qualquer tipo, era preciso sair, imediatamente. Ele tropeçou algumas vezes em sua pressa. Ele odiava tudo isso. Como o sangue de Muzan o fazia se sentir, como mudava mesmo que um pouco seu proprio corpo, que o fazia um estranho para si mesmo.

Uma raiz o fez tropeçar, o jogando com força contra a casca de uma árvore e lá ele ficou, ofegante. Por que ele ainda lutava? Não havia sentido. Se ele se rendesse ali, não haveria ninguém para julga-lo. Ele nunca veria sua família novamente, nesse mundo ou no próximo, pois, seja lá onde eles estivessem, depois de tudo, certamente, ele nunca seria digno de estar com eles.

O choro de uma criança, o despertou de seus pensamentos sombrios. Havia algo no ar, isso grudou no céu de sua boca e a fez salivar. Por um instante, ele arriscou, com seu olfato, o cheiro do sangue foi como um soco. Seus olhos se abriram, quando a cabeça feia de seu instinto se ergueu, a fome rugindo.

Piscando algumas vezes, sua visão se ajustou, os olhos ainda ardiam terrivelmente, sensíveis, mesmo que a cura estivesse praticamente findada. Como que em transe, seus passos o guiou para mais perto daquele cheiro tão tentador.

A primeira coisa que notou, foi pequena, rústica e velha cabana, o que tanto o lembrava de uma outra, sobre uma montanha nevada. Essa lembrança o deteve, fez engolir e cravar as presas nos lábios em busca de controle. Mesmo que não pudesse nunca mais ve-los, mesmo que já fosse um monstro, um lado seu, o fazia lutar, resistir aquela escuridão que se agitava pronta para o consumir.

Uma comoção, mais uma vez, o trouxe de volta ao presente. Pela porta escancarada, uma criança se lançou e logo uma mulher, ela segurava com força um daqueles pedaços de ferro, longo e fino, que se usava para atiçar as chamas. Ela estava coberta de sangue, mas não era dela, por mais que os grandes hematomas que a pintavam, deformando sua face, parecesse ser um indicativo do contrário. Sob o cheiro do sangue que ameaçava anuviar sua mente, ele distinguiu o característico odor do medo, raiva e desespero.

A mulher agarrou a criança,uma menina, não poderia ter mais que três anos. Ela se ergueu com dificultado, seus membros tremendo, forçando seu corpo a continuar, mas foi em vão, ele pode ver sob a barra de suas vestes o tornozelo inchado, ela não iria muito mais longe. Seria tão fácil caça-la... Mais barulho e um homem surgiu na porta, ele segurava uma faca, sua blusa estava empapada de vermelho, era de lá o sangue, uma ferida não muito profunda, mais larga o suficiente para continuar a derramar.

- Sua vadia! Vou matá-la por isso!- O homem rugia furioso.

O grito assustou ainda mais a mulher, ela tropeçou, o bastão de ferro lhe escapando, enquanto ela tentava proteger a criança do impacto. Por um momento, uma visão do passado se sobre pôs ao presente. Ver sua família ali, indefesa a machucada, o fez ferver. O homem não parou, avançando rapidamente, a faca erguida, pronto para perfurar mulher indefesa, indiferente a criança que ela segurava com força contra o peito.

Tanjiro se moveu, antes que pudesse pensar em algo. A faca quebrou quando em contato com sua pele, incapaz de perfura-la. O homem o olhou com espanto, dando um passo para trás, antes que uma mão em garras atravessasse seu peito, o sangue espirrando na face do oni, quente, como uma ambrosia. Quando ele puxou sua mão de volta, o corpo desabou pesadamente. Carne fresca e ele estava com tanta fome, seria tão fácil se abaixar agora e dar uma grande mordida.

- D-demonio!!- A mulher gritou, a voz quebrada de terror, desconhecida, não a de seus irmãos ou mãe.

Demônio. Sim. Era o que ele era, mas ele não queria ser, era errado da parte dele ainda almejar algo mais?

Ele se virou para a mulher, ela ainda estava chorando, o cheiro azedo do medo, era melhor para se concentrar que o do sangue. Ela aprecia bem, no geral, nenhuma daquelas lesões a mataria.

- Você deveria ir a cidade, não é seguro ficar aqui, sozinha a noite.- Sua voz estava rouca, estranha para ele.

A mulher apenas o fitou em choque, emocional demais para dizer qualquer coisa a mais. Ela também não teve tempo. O cheiro do sangue o embreagava, culpa da nova fome, por isso ele não o percebeu, não até que a lâmina estivesse se movendo, cortando o ar, exatamente onde esteve sua cabeça, um segundo antes dele se afastar.

Ele reconheceu aquele padrão estranho de vestimenta, a espada azulada, não tão escura quantos os olhos que o encarava. Provavelmente foi há dois anos, Tanjiro não estava certo sobre, quando demônio, o tempo perde um pouco de seu significado.

- Bem, caçador-san, vejo que chegou em boa hora.- Ele escondeu todo o seu tumulto, com palavras graciosas e um sorriso.- Eu os deixo com você, sim? Agora, eu vou indo.- Ele acenou, antes de desviar mais um ataque.

Seus movimentos ainda eram lentos, mas ele estava começando a se acostumar e o caçador, não deixaria aquela mulher e criança indefesos, o que apenas tornou sua retirada mais fácil. Ele se lançou por entre as árvores, mais uma vez sentido o vento bater forte contra o corpo, enquanto o céu tornava-se mais claro.

A solidão era um peso no peito, esse já tão retalhado, que a cura, pareceu um enlouquente sonho.

Lágrimas Ininterruptas (Concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora