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Havia um barulho constante, parecia o de um pilão, toc toc toc... O cheiro mais pungente, era o de ervas, amassadas e misturadas. Essas foram sua primeira impressão ao despertar, sua mente dispersa, sem memórias, um completo limbo.

Seus olhos se abriram para um teto de madeira, marrom e um pouco lascado. Por um momento, apenas pertenceu ali, confortável sobre um futon. Havia mais alguém presente, naquela mesma sala, podia ouvir e cheirar. Seu corpo era letárgico, indisposto ao movimento, depois do longo período de imobilidade. Diante disso, apenas se virou, curiosamente buscando com o olhar.

Uma mulher, pele branca, cabelos negros, avental branco, olhos lavanda. Ela era bonita, era também quem produzia aquele barulho rítmico, sua atenção no trabalho em mãos. Uma imagem piscou em sua mente, afastando o limbo por um par de segundos.

Outro lugar, pequeno, quente, familiar. Outra mulher, um sorriso acolhedor, uma pinta em seu rosto.

Então, a imagem se foi. Havia uma palavra na ponta de sua língua, sem muito pensar, deixou que saísse.

- Mãe.- Sua voz foi roupa, sua garganta estava seca e ardeu.

A mulher se virou imediatamente, os olhos muito abertos em choque. O pilão caiu de seu aperto, rolando pelo chão, deixando que a erva esmagada se espalhasse.

- Você acordou?!- A mulher falou, assimilando ela mesmo suas palavras, antes que sua expressão viesse a suavizar.- Como está se sentindo?

Sentido? Quando pensa sobre isso, o limbo oscila novamente e seu coração dispara. Imagens desconexas piscam diante de sua visão, enche sua cabeça de vozes. Suas mãos viajam até seu couro cabeludo, apertando com força, tentado entender o que é tudo aquilo.

Lágrimas estão descendo, molham sua face e seu peito, parece carregar um grande peso. Ainda não faz sentido, ainda é incapaz de entender. Mas algo se torna claro, o sentimento que brota e rasga, é tristeza, perda, desespero.

- Se acalme, por favor. Você está em choque.- Alguém está falando, é a mulher de antes, mas sua voz soa distante, quanto tantas outras continuam a tagarelice.

Há algo que deve ser feito. Há alguém que precisa ser encontrado. Salvo? É preciso lembrar, uma urgência ruge agora, empurrando mais imagens, mais vozes. Sua cabeça doi. Há um desejo de gritar, romper o próprio crânio para fazer aquilo parar.

- Você precisa se acalmar.- A mulher ainda insiste, então alguém toca seu ombro, o aperto é um alento, uma âncora que ajuda a distinguir o plano físico das memórias.

Sim, memórias, é isso que as imagens e vozes são, esse conhecimento ajuda. É trabalhoso, demanda atenção, um foco que lhe falta naquele momento, contudo, aos poucos, peça por peça, consegue juntar, dar sentido e contexto aquela confusão delirante.

Ainda é muito. Muito para entender. Muito para lembrar. Então, se agarra as que parecem carregar mais peso. Sua família está morta, é por isso que doi tanto, o porquê de seu coração continuar a sangrar. Há alguém que deve encontrar, alguém importante. O nome está lá novamente, na ponta da língua, se pensar demais as imagens borram, as palavras se embaralham. Como antes, apenas deixa que saia, o som é rouco, ainda que coerente.

- Tanjiro.- É um nome familiar, afasta a dor, esquenta o peito.- Tanjiro. Tanjiro. Tanjiro.- Então, continua a repetir, como uma oração, uma prece. Funciona, pois no momento seguinte, já sabe quem é.- Irmão.

Seu irmão estava em algum lugar lá fora, provavelmente cheio de preocupação, desesperado em sua busca. Essa constatação lhe dar força, todas aquelas imagens e vozes se dispersão. Achá-lo, é o mais importante agora. Agarrando o cobertor que não dera atenção ao despertar, o joga para o lado, mas antes que se erga, seus olhos se voltam para a mulher, tomando ciência de algo muito importante. Aquela a sua frente, era um oni, isso a faz ter vontade de atacar, mas não há nenhuma ameaça presente no olhar ou postura dela.

- Quem é você? Onde é esse lugar?- As perguntas, entretanto, são inevitáveis.

A oni suspira, parece relaxar, a preocupação se amenizando. Ela é diferente, nada como as lembranças vagas que lhe assombra dos outros encontros com demônios.

- Sou Tamayo, uma médica, essa é minha casa e clínica.

- Como vim parar aqui?

Quando pensa sobre, não há algo concreto, era noite, seu irmão gritava para que fugisse, na floresta havia algo que a perseguia. Depois, tudo é breu, há olhos carmins, sangue e muita luz.

O silêncio de Tamayo a deixa ansiosa, um pesar em seu olhar a preocupa. Desconfortável, se agita no futom, desejando se erguer, esticar o corpo rígido e principalmente, escapar daquele olhar.

- A encontrei durante uma viagem, sozinha, coberta de cinzas. Tentei acordá-la, mas fui incapaz.- Houve uma pausa, antes que ela continuasse.- Estive intrigada com sua condição, dormindo por tanto tempo, sem alimento e ainda sim, seu corpo não deteriorou, mesmo agora, você não parece ser como uma besta tomada pela fome.

Dentre tudo aquilo que foi dito, algo tomou mais sua atenção. Foi a alusão ao tempo, esse conhecimento a fez prender a respiração, temerosa pela reposta.

- Quan-to...-É preciso respirar antes de continuar, seu coração disparando, seu estômago esfriando.- Quanto tempo dormi?

Fechando os olhos, é feita uma prece silenciosa, mas algo lhe traz uma sensação ruim. Os segundos se estendem como horas.

- Creio que sejam, mais de 300 anos agora.

Não! Não! Não!

Não pode ser verdade! A negação é inaceitável, uma fuga de ter que enfrentar as consequências daquela declaração. Abandonado a cautela, se ergue, esquivando-se do toque de Tamayo, dispara para a única saída que consegue achar.

Tinha que ser uma brincadeira, mesmo um equívoco. A porta se desprende e voa quando ela a empurra, novamente desacostumada a sua força. Os corredores se perdem como um borrão, mais algumas portas são arremessadas até que o céu estrelado se abra, o mundo está tão claro lá fora que por um instante, pensa ser dia. Mas não é, não há qualquer sol, o que se ergue a frente não são estrelas, mas grandes estruturas cheias de luzes, não vindas de lamparinas, mas mais vibrante.

Quando avança, se vê em um mundo alienígena. Nada daquilo se faria do dia para noite, mesmo em um par de anos. Não importa o quanto negue, a realidade é uma só e ela afunda, sem subterfúgios, lhe arrancando o ar, a enchendo de mais dor.

Mesmo estando cercada, de construções gigantescas, de tantas luzes e pessoas, ela se sente sozinha. Esse é um mundo estranho para ela. Sua família se foi, todos eles, mesmo seu incrível irmão mais velho, afinal, nenhum humano viveria por tanto tempo.

Mais de 300 anos passaram, seu irmão estava morto, essa compreensão a destrói, a fazendo cair sobre os joelhos, incapaz de suportar. O choro veio logo, vibrou por seu corpo como uma tempestade, deixando-a trêmula e fria, o amanhã parece distante.

Lágrimas Ininterruptas (Concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora