Tanjiro XIV

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A cidade é uma sobrecarga sensorial, nunca o deixa de surpreender. Há muita luz, muitas pessoas, sons e cheiros. Para seu olfato, é pior, ele quase se sente bêbado. É também o motivo pelo qual ele não nota suas ações, até que tenha sua mão agarrada as vestes de Tomioka.

Os dois param, a multidão de pessoas esbarra neles, mas nenhum cede espaço. Há um frio crescente em sua barriga, ele quase se sente como uma criança pega fazendo algo indevido. Quando o caçador se volta para ele, Tanjiro espera ser repreendido ou mesmo, ter seu toque rejeitado bruscamente.

Tomioka não se afasta, ele não lança nenhuma reprimenda, mas seu olhar é interrogativo. Ainda sem jeito, Tanjiro se sacode para fora do estupor, forçado-se a pensar em algo.

- Desculpe, há muitas pessoas, temi que pudéssemos nos separar.- Não era de todo mentira, mas as possibilidades eram mínimas, eles eram espadachins treinados, saberiam identificar o paradeiro um do outro.

Sem dizer nada, o oni assisti o caçador puxar levemente seu braço, desembaraçando suas garras do tecido. Tanjiro não resisti, mesmo quando a decepção corroe levemente seu peito, algo que ele ignora ferozmente. Sem a maciez do tecido, Tanjiro recua devagar, sua expressão em branco, é também quando o cheiro de chuva toma quase completamente seus sentidos.

Tomioka se aproximou, invadindo seu espaço pessoal, tomando sua mão infratora na sua, o deixando sentir seu toque quente. Não importa o quanto ele olhe, ainda parece irreal. Suas mãos estão entrelaçadas, ele pode sentir os calos de longas práticas roçar os seus próprios. Ele não lembra quando foi a última vez que teve alguém tão perto, que se sentiu tão quente. Ele não aperta, faminto, temeroso de que qualquer movimento seu possa afugentar o caçador.

- Assim é melhor.- A voz de Tomioka o tira de seus devaneios.

Não lhe é dado tempo para uma réplica, pois o caçador já está andando. Tanjiro não ousa ser deixado para trás, se entregando aquele toque, aquele cheiro. Ele sabe que é errado, ele está sendo fraco, ele devia ter mantido a distância, mas agora é tarde demais. Ele está faminto, não é a fome de carne e sangue, mas aquela que torna seu coração vazio, é também a que mais doi, tê-la saciada mesmo que minimamente, destrói qualquer razão.

Ele irá lamentar depois, agora, ele só quer uma pausa.

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- Desculpe, eu não tenho o direito, mas estava com raiva, frustrado e deixei essas emoções levarem a melhor. Eu estava errado, aprecio nossas conversas, gostaria que pudéssemos voltar a tê-las.

Eles estão agora em um pequeno quarto, obrigados a dividí-lo, pois a pousada está cheia e não havia muitas outras opções. É quase manhã, o sono começa a pesar sobre eles, ambos deitados rigidamente sobre um largo futon, o único disponível.

Quando os minutos se arrastam, Tanjiro não consegue abandonar aqueles sentimentos sombrios que o perturba desde antes de sua partida. As palavras vem rápidas, altas no silêncio. Ele quer continuar a balbuciar, tentando de alguma forma encontrar palavras que pudessem perdoar seu erro, mas sabe que não há nada a dizer, cabe a Tomioka aquela decisão. Então, ele espera, tentando não olhar para o homem ao seu lado, dando-lhe tempo e uma ilusão de privacidade.

- Depois do café.- A voz é um pouco rouca, mas audível.

Tanjiro não pode deixar de se virar, confuso com aquela reposta.

- O que?- Indagou.

Olhos mais escuros na pouca luz se fixaram ao dele, não pareciam frios, mesmo que sua cor remetesse a isso. As pálpebras estavam baixas e suas feições, eram mais relaxadas do que Tanjiro lembra de ter visto no pilar.

- Conversaremos depois do café, agora tenho sono.

- Desculpe! Realmente foi uma gafe da minha parte, por favor, durma bem.

Um leve bufo foi sua reação, antes do caçador se acomodar melhor, seus olhos fechando. Surpreso, o oni não pode deixar de sorrir, Tomioka devia estar com muito sono para demonstrar aquele comportamento.

Mais relaxado, ele próprio se permitiu afundar no futon. Seus olhos lilases continuaram a observar o caçador, tentando a afastar os fios negros rebeldes que caiam sob a face branca. O cheiro de chuva o embalou, ele não pode deixar de pensar o quão estúpido era Tomioka, se permitindo adormecer na presença de um monstro.

Ele não quis ver, ele não quis admitir, pois assim seria obrigado a confrontar os significados por trás daquela realização. Tomioka não podia confiar nele, não podia guardar ou nutrir qualquer sentimento por ele. Foi apenas um deslize, uma ocorrência incomum e quando desperto, o caçador se daria conta e nada como aquilo iria se repetir, Tomioka não baixaria sua guarda novamente.

Enterrando sua face no futon ele quis gritar, mas apenas suspirou. Sonolento, ele pesou em deixar qualquer divagação para um outro momento. Ele se sentia acolhido e confortável.

Ao adormecer, Tanjiro sonhou com um dia de chuva, sob uma casa cheia de calor, seus irmãos estavam lá, seus pais e Giyuu. Ele estava feliz, a fome esquecida e seu coração tão cheio.

Lágrimas Ininterruptas (Concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora