Tomioka VIX

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Em um momento ele parece submerso, há uma dor que cresce e o consumo, a fome o devora e toda sua razão se perde. O mundo parece distante, ele não consegue distinguir com clareza nenhuma daquelas pessoas, tudo que vê é a luz mortal que o queimará e todo aquele vermelho que o chama, o mero cheiro enche sua boca d'água.

Então, há alguém o prendendo, em seu íntimo, ele sabe que o conhece, ele sabe que não deseja feri-lo, mas esse conhecimento é distante e passageiro, pois seja quem for aquele, ele o impede de chegar ao delicioso líquido carmim e todos aquelas presas feridas logo a frente. Aquele estanho, f̶a̶m̶i̶l̶i̶a̶r̶, está gritando, desesperado, ele pode sentir seu aperto de ferro, sentir as lágrimas que pingam em seu próprio rosto.

Uma picada em seu braço o faz afrouxar sua mandíbula, soltando a carne que vinha mordendo ferozmente. Suas veias queimam, ele se sacode, não pela fome, mas pela dor que o faz arder. Distante, seus olhos embaçados parecem clarear. Toques o empurram, há rostos familiares na névoa, sorrisos que pensou nunca mais poder ver. Eles o empurram, transmitindo sua força, o fazendo ciente de que eles não o culpava e que nunca o abandonou.

Giyuu desperta com os olhos úmidos, a calor em seu peito, é cálido, e mesmo dolorido e fraco, ele se sente leve, isento de um fardo que o consumiu pelo que parecia uma vida inteira. Talvez seja início da manhã, o sol adentra suave pela janela aberta, não leva muito tempo para que ele saiba onde estava, a mansão borboleta não era um lugar estranho aos caçadores.

Ele leva um tempo para poder sentar, seu corpo é trêmulo e ele está ofegante ao conseguir. Há outros leitos ao seu redor, mas além dele, apenas um mais está ocupado. No leito ao lado do seu, ele vê os fios ruivos que se espalham libertos de seu familiar coque. Tanjiro está adormecido, a face pálida, faz a marca se destacar. Sua última lembrança dele é de terror, seus olhos arregalados, sua mandíbula apertada quando ele o puxa e empurra para longe, logo o sol acende e as chamas se erguem, o engolindo junto a Muzan.

Há mais, contudo é nebuloso e ele, por um momento, deseja que não tenha sido real, mas um sonho, um pesadelo. Todavia, Giyuu não é tão ingênuo, ele sabe que foi real, ele ainda tem a lembrança terrível do gosto do sangue de Tanjiro em sua boca, da fome que não era saciada, da dor que correria aqueles olhos lilases.

Independente de sua falta de forças, Giyuu leva seu tempo para se ergueu e andar, um passa por vez, até poder tocá-lo, para ter certeza de que Tanjiro está ali, vivo e bem. Parado ao lado de seu leito, o caçador estende sua mão, tacando o oni adormecido. A pele é quante, suave ao toque, imaculada, ele havia curado, nenhuma queimadura restou.

Indiferente ao tempo, Giyuu não se afastou, sentindo seu calor, observando seu peito subir e descer. Ele morde seus lábios, tentando conter as lágrimas. Tanjiro o salvou, não hesitou em nenhum momento, ignorando seu próprio bem-estar. Giyuu sabe o quando Tanjiro se culpa, o quando ele pensa ser indigno de felicidade ou gratidão, se vendo como um monstro, mas ele estava tão errado, Tanjiro, independente de ser um oni, continuava um ser brilhante. Todos tinham falhas, essa é a verdade, e isso não o fazia menos do que ninguém.

Mesmo antes de Tanjiro o perguntar, o que parecia uma vida antes, sobre um telhado, naquela noite em que a batalha se iniciou. Giyuu já sabia e sua resposta continuava a mesma, continuaria imutável, independente do tempo, do espaço, do mundo inteiro.

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Os dias passaram devagar, a ansiedade o consumia. Tanjiro não acordou, não no primeiro mês, ou segundo, ou terceiro e antes que qualquer um se desse conta, seis meses se foram.

Os mortos foram sepultados e homenageados. A corporação foi dissolvida. Os sobreviventes começaram o árduo processo de viver, não mais presos ao dever, a vingança. Surpreendentemente, viver pareceu a parte mais difícil, ter que reaprender ou mesmo aprender, como ser algo além de um caçador, não levar sua lâmina nichirin a todo momento, ter que lidar com os pesadelos remanescentes de uma existência cheia de traumas.

Mais um mês se foi e Tanjiro ainda dormia. Todos os dias, Giyuu foi o visitar, passando horas ao seu lado, lendo um livro ou contado sobre pequenos pedaços de vida, como Nezuko, humana, agora trabalhava como enfermeira na clínica, como ela era importunada por um loiro barulhento. Também havia alguns dias em que Giyuu apenas ficava lá, em silêncio, segurando sua mão.

Um ano depois, Giyuu pediu para Shinobu cortar seu cabelo, ela fez comentários mordazes a cada corte e no fim, ela o elogiou e ele sorriu. Sua amizade era estranha, mas ele não gostaria que fosse diferente.

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Não houve nada de especial que fizesse aquela dia diferente de qualquer outro, o sol não era mais brilhante, as flores não foram mais belas que no dia anterior, os pássaros continuaram a mesma melodia. Ainda, quando Giyuu adentrou a enfermeira, Tanjiro estava sentado, seus cabelos uma bagunça, o olhar confuso ao observar seus arredores. Foi isso que fez aquele dia especial para Giyuu, a presença de alguém querido, saber que ele estava ali, bem, desperto.

- Giyuu?- Sua voz foi rouca, ainda um pouco sonolenta.

Foi seu chamado a despertá-lo de seu transe. Ofegante, Giyuu se apressou em chegar até o ruivo, pela primeira vez, não permitindo que pensamentos complexos o detivesse. O ex-caçador se jogou contra Tanjiro, seus braços o rodeado, o impacto os levando para trás, onde afundaram no colchão e lençóis brancos.

- Giyuu! O que? Está tudo bem?- Tanjiro estava balbuciando, preocupado com a reação incomum.

Com o rosto escondido no peito do ruivo, sua voz veio abafada.

- Você acordou.- Ele respirou, acrescentando.- Já faz tanto tempo, estive esperando.

- Acordou?- Tanjiro estava confuso, era evidente.

Se afastando um pouco, Giyuu levantou seu olhar, observando os olhos de cores distintas. Foi revigorante poder apreciá-los, carinho o fazendo querer afundar, apesar de qualquer constrangimento ou pudor.

Nesse ano que passou, ele teve bastante tempo para debater consigo mesmo, assim como com outros. Era tolice se apegar a tais limitadores depois de tudo, o tempo não parava, por mais que desejasse uma eternidade, nada seria eterno. Assim, era necessário viver o agora, para não guardar mais arrependimentos, ser sincero consigo mesmo, foi um dos passos mais difíceis e gratificantes que se podia aprender a dar, as vezes era um desafio inimaginável, onde se munir de coragem não parecia o suficiente, mesmo assim, ele seguiu, pois a sua frente estava algo mais importante que qualquer dilema.

Foi com isso em mente que ele disse o que vinha ansiosamente fermentado em seu ser, todo esse tempo.

- Eu o amo. Ficarei ao seu lado, como oni ou humano, não importa, por tanto que seja você.- Os olhos lilases abriram mais, a boca meio aberta pela surpresa, as bochechas se enchendo de calor. Uma expressão fofa para alguém tão forte. Giyuu não pode deixar de sorrir.- Essa foi minha reposta.

Foi fascinante assistir o misto de expressões que passou por Tanjiro em um curto espaço de tempo. Quando as palavras e seu significado assentaram, Giyuu viu aquelas olhos brilhar, antes que Tanjiro envolvesse sua face com suas palmas cálidas. Havia um sentimento cru ali, real, imenso em sua própria essência.

- Giyuu, obrigado.- Ele sussurrou, sua voz embargada.

Seus lábios se tocaram com leveza. Inexperientes em seus afetos, mas sinceros com seus sentimentos e emoções.

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Era isso, oficialmente esse é o fim da fic, contudo, estarei trazendo alguns pedaços de vida, pequenos momentos do que veio depois, mas a leitura será opcional.

Por fim, agradeço a todos que acompanharam a história até aqui, o apoio oferecido foi muito necessário para sua conclusão. Obrigada mesmo! Fiquei muito feliz em saber a opinião vocês.


Lágrimas Ininterruptas (Concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora