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Lucien

Era sábado e estava chovendo.
Um sábado chuvoso. Mais um dia chuvoso.

Lucien estava entediado. Já havia feito absolutamente tudo que tinha pra fazer dentro de casa nos últimos três dias de chuva, desde polir e afiar suas espadas, até trocar as cordas de todos os seus arcos para cordas mais resistentes, além de estilizar melhor suas flechas com Jurian ao lado. Já tinha até hidratado seu cabelo com uma planta do povo humano, e feito uma esfoliação facial com pó de café junto a Vassa.

Agora suas espadas conseguem cortar uma maçã perfeitamente com um simples manejar, suas flechas tem uma mistura de penas verdes, laranjas e pretas (antes havia apenas laranjas e verdes. O laranja representa a corte em que nasceu e a corte em que estava. As penas pretas representam sua atual corte). E todas tinham um pequeno desenho de linhas curvilíneas entalhado, que viu uma ou outra vez enquanto estava na corte noturna, mas que chamaram muito sua atenção. Seu cabelo estava mais suave e brilhoso do que nunca, era a primeira vez que o deixava tão longo, e em breve teria de cortar. E sua pele estava tão bela e macia como a de um bebê.

Ainda era cedo, o sol mal havia nascido e ele já estava pensando em como passaria o tempo daquele dia. Durante o dia não podia contar com a presença de Vassa, a maldição de se tornar um pássaro durante o dia ainda não havia sido quebrada, e ela não gostava de ser vista desta forma. Mesmo que Lucien já tenha lhe dito que, mesmo em forma de ave, ela continuava esplêndida.

O que lhe restava, então? Pintar.

Um hábito que ganhou quando foi para a Primaveril após a morte de sua amada. Lucien não gosta de sequer pensar no que aconteceu, mas o fato é que a arte, a pintura, o salvou do abismo em que estava quando chegou à corte mais florida de todas.

152 anos atrás

“Passou alguns meses quebrado. Seu motivo para viver havia sido arrancado. Seu sofrimento falava mais alto que sua vontade de continuar vivo.

Mesmo Tamlin, seu amigo, que na época ainda era um bom grão-senhor e um bom melhor amigo, não conseguia fazer mais nada por Lucien. Já havia feito tanto por ele… Lhe salvou dos irmãos, lhe deu uma morada, alimentação e um título para que ficasse intocável para seus irmãos. Mesmo assim, Lucien passou meses quebrado, mal saía da cama, mal se alimentava. Tinha dias que passava horas e horas apenas encolhido, chorando, desejando algo que nunca poderia ter novamente: seu amor, a feérica que lhe deu um gostinho de liberdade, aquela que olhou pra ele e viu beleza não só em seus traços físicos. A fêmea que viu através dele e percebeu a tristeza por baixo de seus sorrisos falsos. Jesminda, que segurou em sua mão e o guiou à felicidade. Jesminda, que agora não respirava mais. Não poderia nunca mais sorrir para ele, e nem para ninguém. Jesminda, que foi  torturada e morta bem em frente de seus olhos e ele não pôde fazer nada.

Chorou mais ainda. Não sabia há quanto tempo estava assim. Talvez algumas semanas? Meses, quem sabe? Se continuasse assim, mesmo seu corpo forte de grão-feérico não aguentaria. Lucien não comia quase nada e, quando comia, vomitava após ter um pesadelo, revivendo a morte de sua felicidade mais uma vez.

Estava pronto para aceitar a morte. Já tinha vivido bastante, afinal. E, mesmo com tanta dor e tristeza em sua vida, ainda tinha tido bons momentos.
Se lembrou de sua mãe, que sempre penteava seus cabelos e dava livros sobre romances impossíveis, mas que no final eram possíveis. Sua mãe, que ele nunca mais veria. Se lembrou de seus bichinhos de estimação, uma raposa que o acompanhava a qualquer lugar fora do castelo - já que tinha medo de entrar com ela e seus irmãos acharem que seria divertido maltratá-la - e sua pequena serpente, que vivia em um cativeiro em seu quarto. Bichinhos esses que, sem sua proteção, já devem estar mortos. Se lembrou, por fim, de Jesminda… Ela que tinha feito Lucien dar seus primeiros sorrisos verdadeiros depois de muito tempo, e que pintava quadros de folhas secas e esquilos. Jesminda, que estava morta. Morta por sua culpa. Morta porque Lucien se apaixonou por ela.
Lucien estava depressivo. Seu ciclo de pensamentos nunca mudava de direção .
Mas no dia em que resolveu que sua vida não valia mais a pena, quando saiu sorrateiramente da mansão durante a noite e foi em direção a alguma gruta ou caverna, para que pudesse se esconder e morrer de fome sem que Tamlin mandasse criados para obrigá-lo a comer e continuar vivo… Foi nesse dia que viu, de longe, um sentinela com um lampião, um quadro em branco e uma palheta de tintas em frente para um enorme lago, no qual a lua refletia tão lindamente, que até Lucien, que não tinha mais motivos para viver, parou para admirá-la
Naquele momento, Lucien não quis morrer. Ele queria poder se sentar e pintar a lua - mesmo que não soubesse pintar, já que recusou todas as vezes que Jesminda se ofereceu para ensiná-lo.
No dia seguinte, Lucien comeu, bebeu e surpreendeu a Tamlin por sair da cama. E durante a noite ele saiu para olhar aquele lago. Fez isso todos os dias em que não estava tão afogado em tristeza que não conseguia nem se mexer.

Porém não havia visto aquele sentinela novamente, não poderia nem procurá-lo para saber como ficou o quadro, não sabia seu nome e nem tinha visto mais do que sua silhueta sobre a luz das estrelas e da lua.

Alguns meses depois era Lucien quem tentava pintar a Lua, naquele exato ponto onde havia visto o outro pintar. Não iria mentir, sua primeira tentativa foi uma porcaria, a segunda parecia pior ainda, e na terceira ele estava tão estressado, lutando para que ficasse bom, que jogou o quadro no lago.
Não se engane, Lucien ainda estava quebrado e infeliz. Mas aquilo, aquela vontade de fazer algo certo, retratar uma paisagem tão bela… Foi isso que o manteve vivo até que pudesse ter pensamentos racionais e querer viver de novo.

Prometeu a si mesmo que um dia pintaria todas as coisas boas que já viveu, e viveria mais por Jesminda, viveria por ela, para que a vida dela não tivesse sido desperdiçada por um macho que desistira da própria vida.

Viveria para ver mais pores do sol.

Viveria para ver mais crianças brincando nas ruas e nas praças. Viveria para sentir a brisa do mar mais vezes. Viveria para fazer mais amizades e fortalecer as que já tinha. Viveria para ler mais histórias de romances impossíveis que no final eram possíveis. Viveria para cuidar e amar mais bichinhos. Viveria para aprender a pintar e um dia pintar todos aqueles que ama ou já amou…

Apenas viveria.

E ele viveu.
Foi difícil sair da cama por muito tempo, e às vezes era difícil continuar vivendo.

Mas ele viveu.

Viveu mesmo quando a tristeza o arrebatava de volta pro inferno que era sua mente. Viveu quando conseguia sair de sua mente...Apenas viveu.

Atualmente

Ele continua vivendo.

Lucien pegou seu livro com folhas em branco e seus lápis - que ele havia comprado de um viajante que os trouxe de terras além dos mares - e desenhou.
Por mais que quisesse pintar, ainda era um dia chuvoso e úmido. As tintas não iriam secar, e a umidade do ar não iria ajudá-lo na hora que fosse tentar detalhar a pintura.

Desenhou porque isso o acalmava, da mesma forma que pintar o fazia. Porque isso o ajudava a passar o tempo, e não permitia esquecer que havia beleza demais no mundo para desistir de viver.
Desenhou a vista que tinha da floresta, pela janela de seu quarto no segundo andar da sua casa nas terras humanas. Desenhou os pingos de chuva que acumularam na janela e escorregava pelo vidro, embaçando sua vista das árvores. Depois desenhou o que se lembrava da fachada de uma pequena cafeteria de Velaris, com pequenas mesas do lado de fora e uma vitrine chamativa com muitos doces do lado de dentro.
Por fim, desenhou asas. Não qualquer tipo de asas, mas asas Ilyrianas. Asas grandes e com pontas afiadas, de couro preto e envoltas em sombras ainda mais pretas. Gostaria de desenhar o dono daquelas asas mas não tinha sua permissão, e não desenhava ninguém sem permissão. As asas poderiam ser confundidas com as de qualquer Ilyriano, mas Lucien saberia a quem realmente pertenciam.

O porquê de desenhá-las? Porque eram belas.

O dono delas também era belo, mas isso ninguém precisava saber.

Qualquer um que visse Azriel, conseguia ver a beleza do Ilyriano encantador de sombras, e Lucien, apesar do olho de metal, não era cego. Gostava de admirar coisas bonitas - e feéricos bonitos - e o mestre espião estava no topo de sua lista de beleza.

Mas era apenas isso: Lucien achava Azriel bonito.

Nem sabia por que lembrou dele agora… O tédio sempre lhe guiava por caminhos aleatórios. Mesmo que, recentemente, não estejam parecendo tão aleatórios assim. Não quando sempre o levam para asas enormes e ameaçadoras, cabelos curtos e escuros, sempre lisos e jogados sobre a testa de um macho com olhos escuros e penetrantes, que sempre pareciam mais gentis quando olhavam para ele.

Foi apenas por achar Azriel belo que Lucien desenhou suas asas. Apenas por isso.

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