Três Anos e Vários Meses

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Acordei com o sol batendo em meu rosto. Levantei em um pulo, lembrando que não deveria ter pregado o olho ou Levi me expulsaria de vez. Eu ainda nem havia pisado em seu escritório para ajudar com a mudança.

Lavei o rosto com água gelada para despertar, e subi as escadas correndo. O baixote ainda não estava na sala; sorte minha. Ou talvez porque a bagunça ali era tanta que ele não suportaria permanecer naquele lugar.

Organizei o que podia, deixando as caixas prontas para serem levadas até as carruagens. Eram pesadas, todas lotadas de folhas documentais da tropa que não poderiam ser perdidas de forma alguma. Armin dissera que Levi confiou essa tarefa a mim, pois acreditava na minha nova capacidade organizacional; eu duvidei, mas agora parecia ser realmente isso.

Me sentei em cima de uma das caixas e passei a blusa em minha testa cheia de suor; já estava com calor. Fixei os olhos na janela de ferro, enquanto o sol batia em seus vidros, refletindo em cores e formas diferentes na grande estante da sala. Era simples, mas era bonito.

Gravei a ideia em minha mente para tentar pintá-la outra hora, quem sabe. Depois da partida de Esther, meus dedos nunca mais encontraram um pincel ou lápis que fosse.

A última vez em que desenhei, ela estava em minha frente, nua, completamente despida de todos os seus sentimentos doloridos e suas memórias pesadas. Seu corpo brilhava sob a luz do luar, enquanto suas mãos delicadas tocavam a água do lago. A linha de suas costas era tão perfeita, ao ponto de tornar impossível minha tarefa de desenhá-la, afinal, como materializar em um papel a verdadeira expressão da perfeição?

"O que está fazendo?" – sua doce voz ecoou em meus pensamentos.

"Não vai entrar na água? Não me espere, eu demoro um pouco quando estou aqui" – respondi, lembrando dos raros momentos em que recorri a aquele lugar. Era meu santuário, minha fuga, e ter Esther ao meu lado apenas o tornava mais especial.

Passei alguns minutos desenhando-a, mas não me demorei até estar mais perto, tocando seu corpo, fazendo-o arrepiar, sentindo seu coração bater forte junto do meu. Foi uma das noites mais felizes, prazerosas e alegres de toda a minha vida. Tudo acabara.

Em questão de segundos e antes que eu pudesse impedir, foi trazida à minha memória a dor mais incessante que eu já havia sentido. O brilho de seus olhos sendo roubado, seu belo rosto perdendo suas curvas cheias e rosadas; mas ganhando uma expressão de paz e alívio que significava o fim da sua dor de viver uma vida medíocre. Talvez ela tenha descansado.

Passei as mãos em minha cabeça e respirei fundo. Apesar de anestesiado, as memórias eram insistentes em minha mente ao ponto de incomodar-me. Eu já não era mais o mesmo de antes, e nunca mais seria, então não existiam motivos para viver do passado.

Levantei-me e tratei de organizar o restante do que faltava.

A mesa de Levi estava limpa como sempre, mas ainda precisava que fossem guardados os utensílios sobressalentes. Os coloquei um por um, dentro de uma das caixas que ainda estavam vazias, e bati as mãos para me desfazer da poeira.

"Deixo essa mesa aqui, ou a levo para o corredor?"

Decidi levar. Já faria tudo de uma vez, antes que Levi pudesse reclamar.

Segurei a mesa pela lateral, e a arrastei até a metade da sala, quando uma gaveta tratou de cair no chão. Como sempre, o desastrado aqui não poderia deixar de estragar alguma coisa.

- Cacete – praguejei. Como se não bastasse toda a minha avaliação em pendência, agora eu seria expulso por acabar com os móveis do Capitão. Um belo motivo para ser mandado embora, já até imagino como contaria isso aos outros.

Peguei a gaveta, desinteressado do seu conteúdo, e tentei encaixá-la na frente da mesa. Não havia nenhuma abertura para que ela fosse encaixada. Olhei as laterais, e também não encontrei nenhum tipo de encaixe ou puxador. Botei a cara embaixo da mesa e lá estava, uma grande abertura. Demorou alguns segundos até eu me tocar que se tratava de um fundo falso.

Minha curiosidade que antes era inexistente, me fez parar tudo para bisbilhotar os documentos. Algumas pastas pretas enchiam o conteúdo da caixa, e nada que talvez eu já não soubesse, ainda mais depois de termos encontrado grandes respostas no porão da antiga casa de Eren.

Folheei a primeira pasta, encontrando arquivos de todos os tipos sobre Reiner. Sua ficha completa estava ali, com informações que eu não poderia supor nem mesmo em meus maiores devaneios. A segunda pasta também guardava documentos sobre Bertolt, do mesmo teor e com os mesmos detalhes das de Reiner. Fiquei um pouco chocado, mas entendi a necessidade de esconder algumas informações dentro das pastas, aliás, eles foram responsáveis por muito mais do que centenas de mortes.

Abri a terceira pasta, e o nome de Kira estava cravado na primeira folha. Desgraçada, tanto tempo ao nosso lado, principalmente quando ainda sequer tinhamos idéia da droga de destino que nos estava reservado; éramos meras crianças.

Se eu encontrasse qualquer um dos três em minha frente, os mataria com minhas próprias mãos, sem pestanejar.

Folheei mais algumas páginas, até chegar em uma que estava destacada. Pisquei meus olhos, tentando entender o que eu estava lendo, esperando ter lido errado. As palavras não mudavam, não estava errado.

"Esther Wolf – Titã Fêmea" estava estampado em letras garrafais no título do documento.

No restante, seu nome era vinculado a várias tragédias que supostamente Kira teria cometido. Em outros momentos, não era vinculado a nada. Quem escreveu aquilo não tinha certeza sobre o que pensava e sobre o que afirmava. Mas eu tinha.

- Espero que já tenha terminad... – a voz do Capitão se materializou na sala, mas logo parou quando ele viu os documentos em minhas mãos.

- Que porra é essa?! – foi a única coisa que consegui gritar, enquanto jogava os papéis pela sala, partindo para cima do idiota. Eu não aguentaria mais essa. Tudo, menos ela.

Fluctuate (Parte II) - Jean KirsteinOnde histórias criam vida. Descubra agora