Um Ano, Doze Meses e Alguns Dias

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A manhã seguinte não foi nem um pouco proveitosa. Nem mesmo pão com ovos e geléia me animaria a querer comer alguma coisa. Deixar meu estômago roncando já era algo rotineiro. O cigarro fazia parte disso.

Onde está meu cigarro, falando nisso?

Eu precisaria dar um jeito pelo menos nisso. Pelo menos o cigarro deveria me tirar do tédio dos meus dias, ainda que eu tivesse voltado para... este lugar.

O ranger dos bancos do refeitório me enchiam de um nervosismo estranho. Os olhares dos integrantes da tropa – eram tantos, mas não mais do que uma vez já fora – me seguiam para onde eu fosse. Bebendo água, sentando, levantando-me, lavando o copo. Os olhares ainda estavam lá.

Tentei suspirar mais baixo, para não revelar o meu incômodo. Parece não ter funcionado, já que Sasha surgiu se colocando ao meu lado e passando as mãos em minhas costas. Fiz menção de soltar o copo cheio de sabão na pia, mas ela fez um estalo com a boca.

- Não se incomode. Não tomarei muito do seu tempo – seu tom era cuidadoso. Talvez ela ainda estivesse com medo de minhas reações exageradas. Talvez ela somente sentia pena, como Mikasa.

- Estão convocando uma reunião específica. O Capitão deseja vê-lo – o título dele na boca de Sasha, saía com um tom de reconhecimento maior do que eu gostaria. Mas eu não podia negar, era de fato merecido.

Merecido.

Será que algum dia eu mereceria algo? Será que em algum momento de minha miserável vida neste mundo de merda, eu provaria ser capaz de alguma coisa? Eu não acreditava naquilo. Não acreditava mais em nada, e me perguntava por que estava ali. Qual era meu propósito, meu destino, se não morrer engolido por um gigante irracional a qualquer momento?

- Estaremos te esperando. Será daqui uma hora, na sala da comandante.

Sasha fez um aceno com a cabeça, afagou meus ombros e saiu andando.

- Quem é a comandante? – liguei a torneira quando perguntei, tentando não parecer tão interessado em saber quem estaria no comando. Depois de um ano, as coisas poderiam muito bem ter mudado drasticamente.

Sasha respondeu sorrindo por cima dos ombros, dando um aceno de certa forma feliz, calmo – Hange! Ela ainda está conosco!

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Não era difícil gostar de Hange. Para falar a verdade, era uma das poucas pessoas que me olhava sem julgar-me da cabeça aos pés. Parte disso, pelo fato de estar sempre mais preocupada com titãs e suas esquisitices. Mas no geral, ela também era uma boa pessoa.

Atravessei a porta da sala. Os olhares que caíram sobre mim não foram tão pesados quanto os do refeitório. Esses eram mais... contemplativos.

Não estendi o olhar para ver quem estava na sala. Rolei os olhos apenas o suficiente para enxergar Sasha – que convenientemente estava bem perto da porta, talvez sabendo que assim que chegasse eu me moveria para o seu lado. Apertei o passo e ali fiquei, estático.

- É bom saber destes detalhes, Eren – Hange disse, movendo-se em sua cadeira, no meio da pequena roda de pessoas. Não havia nenhuma mesa em sua frente, e era típico dela essa informalidade.

- Mesmo assim, temo que precisaremos nos mover depressa. Eles poderão atacar a qualquer momento – a voz irritada e impaciente de Eren ecoou pela sala. Não pude deixar de olhar.

Seus olhos ainda mais verdes, brilhando com uma forte motivação, qualquer que fosse ela. Seus cabelos marrom-escuros, caindo pelo pescoço – talvez um pouco mais curtos que os meus, percebi. Faziam décadas que eu não os aparava.

Acho que se deixasse suas mechas crescerem, ficaria ainda mais lindo – ela dissera uma vez, puxando meus fios para cima, e arregalando os olhos. Havia percebido que eu me gabaria depois daquela declaração.

Balancei a cabeça. Não era hora para isso.

- Entendo que pense dessa forma, e não está errado. Mas precisamos fortalecer nossa base mais um pouco – Hange respondeu, empurrando os óculos em seu nariz.

Eren bufou e reclamou – Não concordo. Não concordo de jeito algum. Vocês ainda não aprenderam nada depois de todos esses meses? Depois de tudo o que aconteceu?

- Não fale assim com sua Comandante – a voz tediosa de Levi tomou a sala. Olhei de onde ela surgia, e era da outra ponta do círculo de pessoas. Ele estava mais perto de mim e de Sasha. Que bom.

- Eren... – Hange continuou. A voz mais dura do que antes – Você precisará controlar suas motivações pessoais. Digo isso como sua Comandante, e como sua amiga.

Uma risada ecoou pela sala. Eren parecia um palhaço desenfreado, debochando e rindo de cada palavra que Hange dissera.

Me senti mal por estar ali. Me perguntei se aquilo não poderia estar acontecendo por que fui embora, por que deixei o time de Elite de Esther desmanchado e ser liderança alguma. Me perguntei se Mikasa teria dado algum tipo de importância para mim depois de meu desaparecimento, e se Eren teria ficado furioso por isso.

- Quer mesmo falar de motivações pessoais aqui? – a entonação nas duas palavras do meio acenturaram minha desconfiança de que Eren realmente não desistiria da briga - Nenhuma motivação pessoal aqui, supera a daquele cara ali, que está aqui por pura idiotice, depois de ter ficado longe por meses. Quer mais motivação pessoal que isso? Quero lhes dizer que pessoas fracas da cabeça não ajudarão em nada!

Levantei meu olhar de Hange para Eren, curioso para ver de quem ele estava falando. Mas eu já deveria ter suspeitado que era de mim. O louco, o inconveniente, a peça extra de um quebra cabeça que já estava completamente montado.

O dedo de Eren estava estendido para minha cadeira, e ele tremia um pouco. Não era medo, ou arrependimento. Era pura raiva.

- Agora já chega garoto! – Sasha gritou. Sua raiva retumbou pela sala toda, e ela se levantou atirando-se para a frente.

Levi já estava segurando-a pelo braço quando olhei.

Não pude pensar muito bem no que dizer. Não consegui medir as palavras. Nem quis, para falar a verdade. Ele não estava errado. Eu havia fugido e ficado longe por meses, agindo como uma criança mimada, ou um louco insano. Ou as duas coisas até.

- Ele não está errado – respondi, olhando para baixo. Evitei os olhares curiosos sobre mim, mas os senti perplexos, quando falei mais uma vez – Acontece, que não pedi para vir. Eu não queria ter vindo. Sequer sei do que estão falando, e ainda assim fui trazido até aqui. Eu não gostaria de ter me movido da cama nesta manhã, e sou um belo filho da puta por isso. Não passo de um merda, um zero à esquerda, choramingando pelos cantos, pedindo aos Deuses para minha mulher voltar do mundo dos mortos, enquanto vocês fazem todo o trabalho sujo, que nem tenho ideia de como vai. Dadas as circunstâncias, se isso não é ser uma pessoa fraca da cabeça, eu não sei mais o que é.

Silêncio mortal.

Talvez eu tenha ido longe demais. Talvez me despi do orgulho o suficiente para sentirem ainda mais pena de mim, e me enxergarem como um inválido, um louco.

Suspirei, pensando em como consertaria algumas das coisas que falei, ainda que fossem todas verdadeiras. Mas não precisei. Um abraço silencioso me calou, e o cheiro de Mikasa invadiu minhas narinas quando fiz menção de levantar minha cabeça.

- Está tudo bem. Ele não quis dizer isso – ela falou. Suas mãos afagaram meus ombros. Seus cabelos pretos e finos roçaram e fizeram cócegas em minhas bochechas baixas.

Respirei fundo sentindo seu cheiro. Ainda que Mikasa tivesse vindo apenas por pena, aquilo era bom. E eu precisava.

Ignorei os olhares atônitos da sala inteira, de Eren, e me aconcheguei em seus braços.

Fluctuate (Parte II) - Jean KirsteinOnde histórias criam vida. Descubra agora