Dois Anos e Uma Esperança

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Tentei não ceder ao choro soluçado que se formava em minha garganta, mas não consegui. O nó ali outrora preso se desfez, e lágrimas romperam pelos meus olhos, acompanhados da minha respiração inquieta que esclarecia minha dor, meu arrependimento.

Pude sentir a tensão nos ombros de Armin se aliviando assim que percebeu meu corpo se desfazer, como se tivesse se preparado para um novo ataque de ódio vindo de mim, mas que agora não seria mais necessário. Não aconteceu, eu não tive nenhum ataque, nem pelo menos indícios do início de algum. Eu não possuía mais forças para aquilo, sequer.

Sasha ajoelhou-se onde estava e chorou silenciosamente. Por vezes limpava os olhos apenas para voltar a me enxergar - diferente dos outros, sua expressão indicava tristeza ao invés do rancor alimentado durante todos aqueles meses.

Apertei o pingente contra meu peito, com uma força suficiente para fazê-lo atravessar meu corpo, caso Armin não tivesse colocado suas mãos em meus ombros.

- Ela não suportaria vê-lo desse jeito. Não é justo, com você, nem com ela – Armin insistiu, com o tom de voz indicando a última tentativa cansada de me convencer sem precisar forçar-me.

Como se já não tivessem feito isso, seqüestrando e jogando-me dentro de uma carroça velha – por mais que eu soubesse no fundo que essa seria a única maneira de me trazer de volta.

Olhei para o chão e suspirei. Não recuei, não humilhei aqueles que esperavam minha resposta - fosse ela boa ou ruim. Não me opus quando descemos do veículo e entramos no novo alojamento das Tropas de Exploração. Alguns olhares curiosos seguiram nossos passos – meus passos – enquanto subíamos até meus novos aposentos, como Armin havia dito algum tempo antes.

- Seu quarto já está pronto, vamos – ele dissera com calma, me conduzindo para dentro.

Seu quarto.

Me perguntei se eu ainda tinha direito de ter algo ali que pudesse ser chamado de meu. Eu realmente não possuía mais nada que fosse meu de verdade em todos os últimos meses - nem mesmo minha própria consciência.

Também não é mentira que meu coração batia cada vez mais rápido enquanto me aproximava de pessoas que não via há tanto tempo, mas eu não queria pensar nisso. Já era ruim o bastante, ter de lembrar que a única pessoa que deveria estar ali para me receber, não estaria.

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Me levaram até um grande quarto, coberto de pedra clara nas paredes, e com uma janela que se abria para fora, dando vista para um enorme campo de uma grama curta, um pouco cinzenta. O vento que soprava as cortinas e as fazia dançar era frio como um sopro do vazio – de arrepiar as espinhas.

Bati os olhos na lareira que ficava do outro lado do quarto, procurando lenha para ligar aquilo logo. Em outras circunstâncias, eu a deixaria desligada, sem me preocupar se morreria de frio ou não, mas agora era diferente.

A sanidade voltava aos poucos para minha mente, e por mais que eu nunca mais me sentisse completo – não como fora nos dias em que Esther estivera ao meu lado – eu entendia que talvez meu propósito fosse realmente aquele. Estar ali, no final das contas.

Passos curtos aprumaram pelo corredor enquanto eu tratava de ligar a grande lareira do quarto. Bati as mãos limpando a sujeira, e fui até a porta. Sabia que iriam querem me questionar inúmeras vezes até que acreditassem que eu ficaria por ali de vez, quieto.

Abri a porta antes que Mikasa pudesse batê-la do lado de fora.

Um sorriso amarelo brilhou em seu rosto. Mesmo desajeitado, ainda era bonito como nunca.

- Olá – ela disse abaixando a mão em punho que usaria para soar as batidas na porta.

- Olá – não pude encontrar palavras melhores.

Alguns segundos de silêncio perduraram entre nossos corpos tensos, perdendo vez para as palavras que Mikasa conseguiu dizer – e que eu sabia que haviam lhe custado alguma coisa. Provavelmente Eren ficaria dias sem conversar com a garota, por ter vindo me encontrar. Encontrar um desertor, um belo de um covarde.

- Seja bem vindo de volta. Sentimos sua falta.

Eu também, quis responder, mas não o fiz.

Seria puro egoísmo da minha parte dizer aquilo, depois de meses afastando-me e correndo de tudo que pudesse me lembrar Esther. Fugi deles e fugi dela por todo esse tempo, em troca de nada. Pura covardia. Egoísmo e covardia. 

Dizer que também senti falta, seria quase dizer que os traí. Tentei arranjar um meio termo – Obrigado – com a voz falha e pouco convincente, pedi aos Deuses que Mikasa não percebesse a fraqueza no tom. A mentira que poderia ser contemplada atrás de um obrigado solto no ar, simplesmente.

Mikasa mordeu os lábios, e trocou o peso do corpo, se apoiando agora no outra perna.  Talvez ela tenha percebido tudo. Talvez eu tenha estragado tudo antes mesmo de começar a reparar as coisas.

- Tem bolo e chá quente na cozinha. Deve estar com fome.

Eu quase havia me esquecido. Como pude? Os olhos de Mikasa deram uma volta geral pelo meu corpo, quase uma checagem de todo o estrago que aqueles meses em que estive sozinho fizeram-me.

A imagem era péssima. Ombros ossudos, braços finos como nunca, e um rosto com bochechas caídas como as de um cão velho. Era o que me encarava todas as vezes em que eu me colocava na frente de algum espelho.

Ela não havia ido ali por saudade.

Sentimos sua falta. Talvez sim, ou talvez estivesse ali apenas por pena. Talvez todos estivessem tomando algum tempo de suas vidas para me buscar, apenas por pena – apenas para se livrarem do peso da culpa, caso eu morresse no meio de uma overdose de bebidas ou cigarro.

- Tudo bem – respondi. Era o melhor que eu conseguia fazer naquela noite. Talvez o melhor que eu conseguia fazer naquele ano. Talvez o melhor que eu faria para sempre.

Ela deu um sorriso amarelado, e meia volta. Seus passos curtos e rápidos sumiram na escuridão, junto com o barulho de seus sapatos batendo contra a madeira do corredor silencioso.

Não me lembrava de como as instalações dos dormitórios das Tropas era silencioso – pelo menos era, comparado aos bordéis em que passei recentemente. Pensando nos dois, o primeiro era quase um santuário do silêncio, tanto, que os passos de Mikasa ressoaram até ela descer vários lances de escada.

Respirei fundo antes de fechar a porta atrás de mim. Fiz outra vez antes de deitar em minha cama. Minha cama.

Fechei os olhos. Me deixei ser levado pelo lago raso e morno, de águas naturalmente ferventes, que habitava em minha mente.

Nem sempre eu conseguia refúgio ali. Nem sempre aquele lugar se abria para mim, mas naquela noite eu mergulhei completamente em suas águas.

Quando estava quase me afundando, quase me afogando na calmaria das águas mornas, uma mão agarrou meu pulso. Suavemente me trouxe para a superfície, com a mesma delicadeza e de um espírito calmo.

Assim que coloquei meus pés quase flutuantes na grama verde de fora do lago, a mão de seda me desencontrou. Me deixou por ali, sozinho, quieto.

Parecia ter entendido o que eu precisava.

Fluctuate (Parte II) - Jean KirsteinOnde histórias criam vida. Descubra agora