Capítulo 23 - Através do Espelho

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Elizabeth

Silêncio. Foi a primeira sensação que retornou à ela. Ser capaz de sentir a própria mente novamente foi um júbilo de alívio para a garota que passara os últimos meses presa dentro de si, vitima de tiranias e torturas psicológicas que em inúmeros momentos a fizeram querer desistir.

Após o natal, o último momento no qual recordava sentir-se como ela mesma, Elizabeth foi colocada em um canto tão escuro de sua própria mente, que não importava o quanto gritasse ou tentasse usar seus poderes para sair dali, tudo ao redor dela se resumia a uma escuridão avassaladora, acompanhada pela voz de Clarice, provocando, e oprimindo-a.

No início, ela tentou encontrar paredes, ou algo sólido, uma saída, uma fechadura. Mas Clarice a escondeu tão bem que não havia escapatória, não existia nada, apenas o vazio, e o escuro. Assim, dia após dia, Elizabeth perdia as esperanças de sequer ser ela mesma novamente. Além disso, quando conseguia dormir, encolhida e cansada de suas próprias lágrimas, eram os sonhos de Clarice dentro dela.

E assim ela existia, dormia, sonhava. Existia, dormia, sonhava. Toda vida de sua invasora passando diante de seus olhos. Ela testemunhou a infância doce e calorosa de uma garota cheia de vida, a qual ninguém jamais julgaria ser capaz de tamanhas atrocidades. A morte da mãe, Ivette, perante uma doença fatal. Assistiu ao romance entre Helene e Clarice e a maldição de Penélope e Lorraine.

Viu enquanto os moradores da antiga vila em que Clarice morou cercaram a casa em que morava, com tochas e forcados, preparados para expulgar o mundo de mulheres como ela. Sentiu a esperança crescendo dentro de si, ao se lembrar da Helene, fugindo com o quadro, totem de prisão que a essência de Clarice iria habitar e com esperança, um dia, se libertar.

Então, um rosto invadiu seus pensamentos, uma angústia indescritível que mais parecia como a ausência de qualquer resquício de vida. Elizabeth fugiu, tentando trazer à mente as próprias memórias. Lembrar-se de Tomas e Ansel, e do que o amor deles superara, de como ela havia testemunhado a felicidade do irmão.

Ainda assim, a esperança era algo que já não se dava o luxo de ter, perante a escuridão que a cercara. Talvez, se aceitasse seu destino, se cedesse ao controle de Clarice, poderia finalmente descansar. Foi então que algo peculiar aconteceu, naquele espaço ao redor dela, com nada além das trevas, projetou-se um grande espelho com bordas de madeira.

De início, ela obviamente pensou ser mais uma das armadilhas de Clarice, mas, do outro lado, algo parecia chamá-la, convidá-la a se aproximar. Ainda em alerta, Elizabeth aproximou-se do espelho o suficiente para tocá-lo. O que a surpreendeu, no entanto, foi o fato de que o vidro não era composto por uma superfície sólida, e sim, se assemelhava a um vácuo.

Ali, mais próxima daquele objeto misterioso, ela sentia-se cada vez mais atraída pelo que quer que existisse do outro lado. Mais uma vez, olhou ao seu redor, a escuridão continuava a pairar, sufocante. Seja o que a esperava do outro lado, não podia ser pior do que o lugar onde estava. Dessa vez, sem hesitar, a bruxa atravessou o espelho.

*

— Ela está acordando! — alertou uma voz familiar. — Como se sente?

A luz intensa do exuberante candelabro no teto da sede invadiu os olhos de Elizabeth agressivamente. Aos poucos, outros sentidos pareciam retornar à ela. Pode perceber o cheiro de sangue vindo da sala de estar, assim como os gritos incessantes e as batidas contínuas ao lado de fora, como se várias pessoas estivessem, ao mesmo tempo, tentando invadir o lugar, sem sucesso.

Os olhos enfim conseguiram enxergar de forma mais nítida e ela logo reconheceu as duas figuras à sua frente. Paradas com um tom de curiosidade em seus rostos, Penélope e Lorraine estavam imponentes, usando extensas capas pretas com os capuzes caídos nas costas.

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