Capítulo 12 - O primeiro milagre de Clarice

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Clarice

Seus cabelos eram pretos, como carvão. Ao contrário dos de Clarice, seus cachos eram muito menos encaracolados. O rosto continha uma melancolia familiar, apesar de ser duro e distante. Poucas sardas ameaçavam ser notadas abaixo dos olhos azuis como o mar. Ela era um pouco maior do que Clarice, e respirar através de seus pulmões fazia parecer que o ar havia se tornado quente, enquanto enxergar dava a impressão de as cores serem mais vívidas.

Clarice tocou seu rosto, ou o dela, enquanto encarava o enorme espelho na parede. O corpo era jovem, devia ter em torno de 25 anos. Um pouco mais velha do que ela quando morreu. Ainda assim, se sentiu confortável ao habitá-la, talvez mais do que se sentiria se tivesse seguido o planejado e escolhido Phoebe para essa grande honra.

A textura da pele continha oleosidade. E o olfato abria um conjunto de possibilidades através de aromas jamais experimentados por ela, cheiros de todas as formas e intensidades entravam por seu nariz, agora os dela. Os sons pareciam vir de todas as direções, levou algum tempo para que pudesse se concentrar no vento que agitava as folhas das árvores e a peculiar máquina de jardinagem ligada pelo zelador ao amanhecer.

Cada sensação fazia parte daquilo. Clarice se lembrava de sua mãe, Ivette, ela costumava dizer que habitar o corpo de alguém era uma espécie de magia tão complexa que precisava ser performada com excelência. Inúmeros foram os casos de bruxos que, ao invés de realizar uma possessão bem sucedida, geraram em seus hospedeiros transtornos de personalidade, ou foram suprimidos pela própria consciência que desejavam silenciar.

Não Clarice. Habitar Elizabeth foi algo que decidiu desde o início. Lembrava-se, como se fosse ontem, a sensação de euforia e poder gerado pelo despertar dela naquele motel surrado. Helene, ou Louise, como ela agora é conhecida, foi imediatamente até lá. "Eu quero ela", Clarice sussurrou com todas as forças que podia enquanto Elizabeth estava desmaiada no chão.

Helene, sua amada. Clarice a olhou. Dormia pacífica envolta em lençóis brancos. O novo corpo ainda soava estranho. Porém, depois de tudo que fizera por Clarice, ela a amaria em qualquer pele. Vê-la partir em agonia com o corpo de suas irmãs era uma das memórias mais tristes que carregava. Tinha arrepios ao lembrar das chamas consumindo a casa, engolindo sua pele.

E então nada. Trezentos anos vendo e ouvindo através de uma porta. Sem poder sair, completamente silenciada. Penélope e Lorraine foram cruéis a tal ponto. Vadias estúpidas, cegas por poder. Pagarão. Disso Clarice se certificaria, pensou, o destino de suas irmãs será pior que queimar no fogo do inferno, isso seria misericórdia para elas.

Ela se afastou do espelho quando ouviu o chamado de Helene:

– Clarice? Volte para a cama, ainda é cedo.

– Amor – Disse e caminhou na direção da mulher deitada na cama, tentando encaixar Helene ao rosto que via. – É estranho para mim vê-la nesse corpo, peço perdão.

Helene se sentou no colchão macio e tirou os cabelos da frente do rosto.

– O sentimento é mútuo – Murmurou ela. – Ainda mais quando você habita uma garota que ensinei por algum tempo. Mas isso não me faz amá-la menos.

Clarice sentou na beirada da grande cama e acariciou as pernas da mulher.

– Claro que não. Não se preocupe, Elizabeth não está sentindo dor. No momento, sua consciência dorme tranquilamente até que façamos o ritual do selo.

– O ritual do selo? – Louise pareceu intrigada. – Há necessidade de colocarmos isso em prática?

– Sem dúvidas. – Clarice juntou suas mãos. – Mesmo que esteja adormecida, a consciência de Elizabeth pode acordar a qualquer momento, você mesma viu o quanto seu poder é selvagem e voraz. Através do ritual do selo, serei capaz de acessá-lo e somá-lo ao meu.

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