Prólogo | Escuridão

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A noite mais uma vez se abatia por todo o céu manchado pelo crepúsculo avermelhado, cobrindo toda sua cor com uma capa negra e intransponível. Pouco a pouco a penumbra foi invadindo a floresta, os muros e o jardim, até que tudo estivesse completamente mergulhado em escuridão. A lua há muito não surgia ali; parecia se recusar a sair de trás das camadas de nuvens que preenchiam o céu noturno e triste. Não havia movimento que não fosse o do vento levando as folhas mortas do chão, e do estalar de galhos partindo-se das árvores sem vida que ocupavam todo aquele largo espaço. Logo após os portões surgia um caminho de tijolos, encoberto pela grama por anos não cortada. Ele levava exatamente à grande porta de entrada de uma imensa e lúgubre construção: uma mansão, majestosa e imponente, que se estendia de canto a canto do espaçoso terreno. As inúmeras vidraças da grande casa tremulavam à vontade do vento, e não fosse por uma minúscula porção de luz que se derramava por uma delas, no andar de cima, poderia-se dizer que aquele pequeno pedaço de mundo, um dia, houvera sido condenado à eterna escuridão.

A luz surgia de uma vela pequenina, queimando os seus últimos segundos de pavio sobre um pires, descansada sobre um pequeno móvel de três pernas. Era uma sala não muito grande, repleta de quadros espalhados por cada uma das paredes – essencialmente imagens de rostos pálidos, exibindo-se à meia luz. Frente a uma destas paredes havia uma velha poltrona, macia e confortável. Uma figura humana, magra e esguia descansava sobre ela, os braços estendidos sobre os do assento encardido, as costas rigidamente eretas acompanhando a direção do encosto. O pescoço virado para trás induzia o rosto inexpressivo a fixar-se no teto que, para outro que o visse, parecia prestes a despencar. Era um homem muito magro, de pele muito branca e rosto descorado; seus cabelos lisos muito bem penteados cobriam parcialmente as orelhas, quase misturando-se com a barba escura e mal feita. Seus dedos indicadores, posicionados horizontalmente sobre o comprimento dos braços macios da poltrona estavam inquietos, movimentando-se para cima e para baixo numa mistura de impaciência e a tentativa de imitar o ritmo de um pulsante coração.

Ao redor dele, criadas pelo dançar da minúscula chama que bruxuleava, sombras deslizavam pelas paredes, passeando agourentamente através das inertes pinturas com seus olhares fixados a lugar nenhum. Uniam-se em formas de dedos compridos, macabros e ameaçadores, e pareciam cercá-lo na intenção de jamais permitir que se libertasse. Uma das mãos sombrias, então, desprendeu-se das demais; moveu-se lentamente para fora do aglomerado de trevas, revelando um braço comprido seguido de um tronco escuro. Em seguida, um rosto inumano surgiu sob o efeito da vela, com olhos vazios e uma boca aberta que, mesmo sem dentes, sorria. O ser de trevas encarou, assim, o homem à sua frente por alguns segundos, e então pareceu sorrir ainda mais. De forma infernal e completamente intangível, os dedos compridos arrastaram-se da parede até o chão, aproximando-se, ameaçando em silêncio aquele que os observavam. Por fim alcançaram o pequeno móvel, e logo depois o que restava da pequena e já enfraquecida vela de cera amarelada. Sem nenhuma delonga e sem qualquer piedade, os dedos de sombras rodopiaram ao redor da chama, fazendo-a desaparecer com um sopro que surgira de lugar nenhum. Escuridão.

O homem, assim, viu-se completamente entregue ao próprio destino, gastando cada uma das horas de sua vida apenas em silêncio. Nada além das trevas devorando-lhe por completo era capaz de dar a ele um singelo momento de calmaria, um simples momento em que não sentisse arder as entranhas com aquelas lembranças; lembranças de uma vida que nem ele mesmo sabia se vivera, ou se agora tudo era apenas um fruto de sua mente atormentada. Tudo dentro dele eram apenas turbilhões de dúvidas e medo, não da morte, mas de continuar vivendo - medo de ser eternamente perseguido por aqueles fragmentos de vida, retalhos de alma, pelos destroços de um amor que se deteriorava através do tempo, e que lentamente desmoronava junto das paredes da escura mansão.

Não era o fim, ele sabia. Era apenasmais um terrível e indesejado recomeço.A luz surgia de uma vela pequenina, queimando os seus últimos segundos de pavio sobre um pires, descansada sobre um pequeno móvel de três pernas. Era uma sala não muito grande, repleta de quadros espalhados por cada uma das paredes – essencialmente imagens de rostos pálidos, exibindo-se à meia luz. Frente a uma destas paredes havia uma velha poltrona, macia e confortável. Uma figura humana, magra e esguia descansava sobre ela, os braços estendidos sobre os do assento encardido, as costas rigidamente eretas acompanhando a direção do encosto. O pescoço virado para trás induzia o rosto inexpressivo a fixar-se no teto que, para outro que o visse, parecia prestes a despencar. Era um homem muito magro, de pele muito branca e rosto descorado; seus cabelos lisos muito bem penteados cobriam parcialmente as orelhas, quase misturando-se com a barba escura e mal feita. Seus dedos indicadores, posicionados horizontalmente sobre o comprimento dos braços macios da poltrona estavam inquietos, movimentando-se para cima e para baixo numa mistura de impaciência e a tentativa de imitar o ritmo de um pulsante coração.

Ao redor dele, criadas pelo dançar da minúscula chama que bruxuleava, sombras deslizavam pelas paredes, passeando agourentamente através das inertes pinturas com seus olhares fixados a lugar nenhum. Uniam-se em formas de dedos compridos, macabros e ameaçadores, e pareciam cercá-lo na intenção de jamais permitir que se libertasse. Uma das mãos sombrias, então, desprendeu-se das demais; moveu-se lentamente para fora do aglomerado de trevas, revelando um braço comprido seguido de um tronco escuro. Em seguida, um rosto inumano surgiu sob o efeito da vela, com olhos vazios e uma boca aberta que, mesmo sem dentes, sorria. O ser de trevas encarou, assim, o homem à sua frente por alguns segundos, e então pareceu sorrir ainda mais. De forma infernal e completamente intangível, os dedos compridos arrastaram-se da parede até o chão, aproximando-se, ameaçando em silêncio aquele que os observavam. Por fim alcançaram o pequeno móvel, e logo depois o que restava da pequena e já enfraquecida vela de cera amarelada. Sem nenhuma delonga e sem qualquer piedade, os dedos de sombras rodopiaram ao redor da chama, fazendo-a desaparecer com um sopro que surgira de lugar nenhum. Escuridão.

O homem, assim, viu-se completamente entregue ao próprio destino, gastando cada uma das horas de sua vida apenas em silêncio. Nada além das trevas devorando-lhe por completo era capaz de dar a ele um singelo momento de calmaria, um simples momento em que não sentisse arder as entranhas com aquelas lembranças; lembranças de uma vida que nem ele mesmo sabia se vivera, ou se agora tudo era apenas um fruto de sua mente atormentada. Tudo dentro dele eram apenas turbilhões de dúvidas e medo, não da morte, mas de continuar vivendo - medo de ser eternamente perseguido por aqueles fragmentos de vida, retalhos de alma, pelos destroços de um amor que se deteriorava através do tempo, e que lentamente desmoronava junto das paredes da escura mansão.

Não era o fim, ele sabia. Era apenas mais um terrível e indesejado recomeço.


Albertine | Por onde seguir quando o amor e a morte cruzam o mesmo caminho?Onde histórias criam vida. Descubra agora