Capítulo XXIII | A última xícara de chá

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Já passava da hora do jantar, mas a mesa ainda não havia sido posta. Tudo estava um pouco diferente na mansão naquela noite. O habitual silêncio fora substituído por melodias emendadas, criadas por Albertine no grande piano da sala de música. Nos dois dias que haviam passado desde o 'incidente dos objetos voadores', como todos nomearam o fato, a esposa de Jeremy recuperara boa parte da saúde perdida. O corte em sua cabeça parecia pronto a cicatrizar, e as gazes e faixas que o protegiam já não mostravam focos de sangue quando removidas. Antes do escurecer, descera sozinha até a sala de música, e por lá permanecera praticando composições conhecidas e algumas próprias.

A mansão não parecia a mesma. Nem mesmo Albertine parecia ser mais a mesma pessoa que era um par de dias atrás. Continuava fria e rígida desde seu último encontro com Dianne, o encontro que a fizera decidir em finalmente ceder ao que não poderia ser combatido. E lá estava ela, vivendo as últimas horas daquele último dia. O último dia ao lado de Jeremy, de Rosa e da mansão. Tudo já estava pronto. Os preparativos já haviam sido feitos no decorrer da tarde, com a ajuda e discrição de Rosa. Os outros criados foram sigilosamente postos a par dos acontecimentos – exatamente todos os terríveis acontecimentos – e mesmo chocados e ligeiramente perdidos, concordaram em ajudar na fuga, especialmente fazendo o possível para que Jeremy nada percebesse. Nada poderia dar errado.

— Esta é sua? – a voz de Jeremy soou, e em seguida ele surgiu repentinamente na sala de música. –Nunca ouvi esta antes.

— Sim, esta é minha – Albertine respondeu sem olhar-lhe nos olhos.

— Como se chama?

— Não costumo nomeá-las.

— Isso é incomum, não acha?

— Não me importo que seja.

Jeremy observou a rigidez da expressão de sua esposa antes de pensar em qualquer palavra. Não conseguia mais reconhecê-la.

— Você vem jantar?

— Sim, já estou indo.

Jeremy dirigiu-se à cozinha, sentou-se à mesa e observou as mulheres preparando o jantar. O aroma era delicioso como de costume, mas o apetite não aflorara ainda nas entranhas do jovem Ridell. Rosa espiou por cima do ombro, enquanto preparava uma salada leve, e notou quão estranho e preocupado Jeremy parecia estar. Engoliu a seco ao imaginar que ele, da mais sutil maneira, desconfiava de alguma coisa. Suas mãos tremeram naquele instante.

— Preocupado, Jeremy?

— Talvez...

— Posso saber o motivo?

— Albertine. Está diferente. Estranha, eu diria.

— Ela ainda não está totalmente recuperada. Está doente e ferida. Acho que sabe bem disso.

— Ela nunca me tratou desta forma.

Rosa então virou-se e olhou-o diretamente nos olhos escuros. Suas pupilas se encontraram e a expressão da governanta tornou qualquer outra palavra completamente dispensável. Jeremy percebeu no piscar daqueles experientes olhos que não poderia exigir diferente comportamento de sua esposa. Há algum tempo não fora um bom companheiro, e um coreto de madeira não poderia tornar isto menos doloroso.

— Aonde vai? – perguntou Rosa ao vê-lo levantar-se, visivelmente frustrado.

— Perdi a fome. Vou para o quarto.

Albertine | Por onde seguir quando o amor e a morte cruzam o mesmo caminho?Onde histórias criam vida. Descubra agora