Capítulo XXI | Cartas

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"Mais uma vez procuro sua ajuda, porém desta vez de forma mais intensa e urgente. O volume traduzido que me permitiu trazer de sua coleção pessoal foi de todo útil, e só através dele foi possível encontrar o retalho que ainda faltava. Não posso prolongar-me nesta carta, já foi deveras difícil escrevê-la sem ser descoberta, mas Rosa irá contar-lhe tudo nos detalhes necessários. Peço que a receba e a escute, e é exatamente por isso, por conhecer sua discrição para com estranhos, que pedi que esta breve carta – embora ache que não passe de mero bilhete – lhe fosse entregue para comprovar minha ligação com Rosa, além da necessidade irremediável de receber qualquer palavra sua sobre o que ela irá contar. Sinto como se puxada, arrastada por uma força que não consigo combater, e ninguém além de você, grande amigo Jullian, será capaz de entender o que estou a presenciar dia após dia nesta casa. Sei que posso contar com sua grande sabedoria.

Albertine"

A carta escrita em papel amarelado foi cuidadosamente dobrada, tornando-se três vezes menor que seu tamanho original. Um breve momento de distração de Jeremy – que nos últimos dias parecia vigiar cada passo das mulheres - foi suficiente para que Rosa providenciasse papel e caneta, assim como um livro para ocultar o bilhete assim que finalizado, eliminando a possibilidade de terem seus planos descobertos. Era uma tarde congelante e triste, adornada por uma nevasca que tingia ainda mais de branco tudo que a vista podia alcançar.

— Então temos tudo resolvido. Eu e Robert sairemos amanhã antes do amanhecer, e como Jeremy costuma dormir até muito tarde durante o inverno, é provável que já estejamos de volta antes mesmo que se levante – disse Rosa apoderando-se do livro que protegia o tão valioso bilhete.

— Tente fazê-lo beber um chá de ervas calmantes, isso prolongará seu sono e lhe dará mais tempo. Estaremos perdidas caso ele descubra que foi até a cidade sem que saiba.

— Vai dar tudo certo. Estaremos de volta antes mesmo que você perceba – disse Rosa confortavelmente, procurando tranquilizar a tão preocupada Albertine.

O resto do dia seguiu lento e monótono, entre livros e chás, emendando-se à noite quase infinita, repleta de anseios e medos. Albertine não conseguira fechar os olhos nem mesmo a um minuto de sono; de repente sua vida havia se tornado tão confusa como nunca fora, e tudo parecia decididamente fora de ordem: sua saúde, seus hábitos e, por fim, algo que ela jamais imaginara – seu amor por Jeremy. Sabia que estava inimaginavelmente longe de deixar de amá-lo, porém, naquele momento, não sabia exatamente o que sentia pelo homem que desde sempre fora dono de seu coração.

* * *

O grande relógio da sala bateu as cinco badaladas da manhã, fazendo vibrar as paredes como sempre fazia a cada hora percorrida. O sol ainda não havia nem mesmo manchado o céu escuro com seus primeiros raios avermelhados, e Albertine ainda não havia conseguido manter a mente tranquila ou ao menos relaxada. Chegara a hora marcada da partida de Rosa, e após alguns minutos de espera, durante os quais a euforia da jovem pareceu prestes a enlouquecê-la, os passos suaves e inconfundíveis da governanta percorreram o corredor. Ao lado esquerdo da cama Jeremy mantinha seu sono intocado desde a hora em que largara-se ao macio colchão, visivelmente afetado pelo chá que Rosa com maestria o fizera beber, o mesmo chá que tantas vezes o prendeu ao leito por horas a fio.

Tudo estava perfeitamente em ordem, e assim deveria ficar até que a carruagem retornasse da cidade trazendo notícias – se boas ou más era ainda impossível dizer. Albertine acompanhava cada um dos movimentos do lado de fora, e rezava para que Jeremy também não os ouvisse. A porta da frente foi aberta e novamente fechada em uma fração de minuto; a neve denunciava o movimento no jardim da mansão ao ser pisada pelas botinas de couro de Robert. As correntes rolaram, os portões rangeram como nunca antes, e a carruagem atravessou vagarosamente por eles. E para o sossego de Albertine, seu esposo permanecera tão quieto como um bebê possuído pelo sono após a mamadeira quente.

Albertine | Por onde seguir quando o amor e a morte cruzam o mesmo caminho?Onde histórias criam vida. Descubra agora