Capítulo XVII | O demônio na gaiola

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Os portões já estavam abertos, os cavalos prontos, e todos os passageiros, exceto Albertine, já acomodados, divididos nas duas carruagens. Jeremy andava em círculos, arremessando porções de neve com os sapatos recém-engraxados. Estava já impaciente pelo atraso de Albertine, que na hora final percebera a intensidade do frio que se abatia fora das paredes da mansão, retornando assim ao quarto a fim de apanhar algum item para agasalhar-se e evitar um possível resfriado.

— Por que ela demora tanto? – ele questionou-se, mirando o olhar de Rosa, que parecia divertir-se com sua irritação.

Antes que ele concluísse mais uma volta ao redor das carruagens, Albertine surgiu à porta usando um delicado xale de cor vinho, que caiu perfeitamente sobre o vestido verde-musgo. Trazia ainda um pacote entre os braços, algo que não carregava antes de retornar à mansão.

— Aonde vai com isto? – Jeremy perguntou antes mesmo que ela pudesse terminar de trancar a porta.

— Ao festival, Jeremy. Esqueceu-se da feira de livros? Selecionei alguns volumes velhos e estou levando-os para colaborar com a igreja.

— Oh, claro. O Padre Jullian realmente precisa de quatro livros cheios de mofo.

— E você precisa aprender a não ser tão constantemente desagradável.

— Dê-me o pacote, me deixe carregar até a carruagem. Isto me tornaria uma pessoa melhor?

— Não se preocupe, posso carregá-los sozinha – ela retrucou, acelerando seus passos ate distanciar-se de Jeremy.

Em carruagens separadas o casal iniciou a viagem até a cidade. A trilha da floresta não se permitia ver por baixo da neve, e os veículos moviam-se com certa dificuldade, deixando fundas marcas ao longo de toda a trajetória. A floresta nunca esteve tão clara como naquela noite; mesmo sem a luz do sol, o branco da neve absorvia o brilho da lua e convertia-se quase em uma superfície espelhada, refletindo sua luz prateada e vívida.

No interior da carruagem, as criadas conversavam animadas sobre o festival, mas Albertine apenas ouvia de maneira dispersa. Sustentava os livros junto ao peito, desejando chegar o quanto antes à cidade. Jeremy e Rosa encontravam-se na mesma carruagem, mas também não conversavam além do necessário. Algo que Rosa sempre evitava fazer era iniciar uma conversa com Jeremy após algum momento em que, da mais simples maneira, ele houvesse sido contrariado, e se ela não o conhecesse tão bem, não notaria que o rapaz não estava indo ao festival por livre e espontânea vontade. Dias frios eram os que mais o incomodavam, desde sempre, sem dúvidas devido às suas dores ósseas que se manifestavam naquele tipo de ocasião.

Ainda ligados a este problema, entretanto, Rosa percebera que, naquele início de inverno, Jeremy parecia mais saudável do que fora durante toda sua vida. As bochechas sempre pálidas exibiam um leve tom rosado, o corpo magro parecia ligeiramente mais preenchido, e até mesmo as olheiras que o acompanharam durante toda a vida pareciam sumir, dia após dia. Jeremy estava mudando – impossível dizer se com mais intensidade por dentro ou por fora.

* * *

Já na entrada da cidade, os ornamentos do festival alegravam cada uma das ruas, largas ou estreitas. À medida que avançavam rumo ao foco dos festejos – a praça principal –, o movimento de pessoas, divertidamente vestidas por casacos coloridos, aumentava e dificultava o trajeto das duas carruagens. Pouco antes que avistassem a torre da igreja, enfeitada por dezenas de lâmpadas amarelas, uma girândola explodiu no céu, derramando flocos multicoloridos sobre os telhados cobertos de neve. A música já se fazia ouvir ao longe, misturada entre tamborins e clarinetas, soando no típico estilo medieval, comumente tocado nos festivais que se iniciavam junto com o solstício de inverno.

Albertine | Por onde seguir quando o amor e a morte cruzam o mesmo caminho?Onde histórias criam vida. Descubra agora