Capítulo I | Dois corações

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Uma agridoce tarde de verão passeava pelo céu escurecido, carregando tufos de nuvens cinzentas que denunciavam a aproximação de mais uma pancada de chuva sobre o lugarejo onde a vila existia solitária. As ruelas mostravam-se pouco movimentadas, e apenas alguns coches transitavam tranquilamente pelo chão de terra batida. Era uma vila pacata, localizada em uma região montanhosa e acompanhada de uma vasta floresta que surgia logo depois dos limites da estrada do sul.

Em uma das amigáveis ruelas, frente a uma construção discreta de paredes brancas e bem cuidadas, estavam duas crianças. Uma delas era um menino de pele branca e cabelos negros, trajando roupas escuras e rígidas que conferiam-lhe uma aparência triste e pouco infantil. A outra era uma menina igualmente branca, porém de cabelos muito louros, elegantemente vestida como uma pequena dama. Brincavam em um discreto canteiro de flores, correndo em curvas, de um lado a outro, e de forma rítmica largavam-se na grama ou na areia, libertando largos sorrisos de mais pura felicidade. Aparentavam nove ou dez anos de idade cada um – a menina repleta de vida, bochechas coradas como pêssegos recém-colhidos, e o menino, por sua vez, exibindo aparência frágil e franzina através de um rosto pálido como a cerâmica branca de uma estátua de jardim.

— Jeremy! – disse a menina correndo em sua direção com as mãos juntas formando uma concha – Veja o que encontrei!

— Livre-se disto, Albertine, é nojento! – gritou o garoto, ranzinza, ao visualizar um pequeno caracol de jardim nas mãos da companheira.

Albertine pareceu desconsertada, e mostrando-se insatisfeita, largou o caracol junto a algumas flores amarelas próximas a seus pés.

— Albertine! – ouviu-se logo atrás deles uma voz feminina e suave. – Vamos embora!

— Não, mamãe! Deixe-me ficar mais um pouco! – seus olhos verdes cintilaram de esperança em permanecer ali com seu amigo, correndo e sujando seu lindo vestido cor de creme de terra molhada.

O menino lançou o mesmo olhar à mulher que se prostrara diante deles vestindo delicadas luvas de seda verde-musgo, que combinavam perfeitamente com o vestido de mesma cor, mas ela instantaneamente negou o pedido apontando ao céu, na direção de grandes nuvens escuras que rapidamente engoliam o azul que imperava até alguns momentos atrás.

— Não quer ficar aqui e acabar encharcada como um animal selvagem, quer? – caçoou de maneira divertida a mãe da menina, a senhora Georgia, enquanto livrava os cabelos da filha de algumas pétalas amarelas que haviam emaranhado-se em seus longos fios. – Amanhã você pode brincar novamente com Jeremy.

Despediram-se sem ânimo, e sem nenhuma delonga o menino correu o mais rápido que pôde já na tentativa inútil de desvencilhar-se dos grossos pingos de chuva que despontaram do céu, agora quase completamente fechado pelas camadas de nuvens de chumbo. Correu por incontáveis ruas até chegar à frente de uma grande casa branca, abrindo com pressa o grande portão que gemeu e estalou ao ser novamente fechado, e logo estava diante da porta de entrada. As roupas já pingavam, e os cabelos escuros já grudavam-se à testa do garoto. Entrou e esgueirou-se de um lado a outro, aparentemente espreitando a presença de alguém no recinto, mas não havia ninguém. Saiu em disparada escada acima antes que Rosa o encontrasse molhado, sujo de lama, pisoteando o mármore impecavelmente limpo a caminho de seu quarto. Tirou as roupas molhadas e num instante já se encontrava no toalete, enchendo a banheira branca de água fria, algo que intensamente detestava. Não podia, porém, entregar-se a Rosa indo pedir-lhe para aquecer água, permitindo que visse o estado de imundície em que se encontrava. Uma porção de arrepios pareciam-lhe sempre mais agradáveis do que as longas broncas que sua cuidadora costumava proferir.

Albertine | Por onde seguir quando o amor e a morte cruzam o mesmo caminho?Onde histórias criam vida. Descubra agora