Capítulo 1 (Cristina Mendes - 13 anos)

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A chuva bate com muita força na janela larga, ferrugenta e partida, fazendo imenso barulho e deixando entrar pingos molhados e frios, mas o pior é a trovoada ruidosa e brilhante que faz na rua, aparece sem avisar e provoca um enorme susto. A parede é de tijoleira e é bastante fria, nestes dias torna-se ainda pior e com o colchão no chão, vejo e ouço muita coisa, mas o frio é mortal e chega ao ossos. Ninguém imagina como vivo, pensam que a nossa casa é cheia de luxo e vivemos bem, no entanto, não conseguem ver além das aparências e reconhecer uma criança cansada e sem vitalidade, uma mulher que nem permite que a filha brinque com outras crianças e um homem que procura mais possíveis maridos para a filha juvenil do que trabalha para sustentar a família.

A nossa casa apresenta uma frente com uma porta toda trabalhada e uma pintura quase impecável, a sala de visitas está sempre limpa e organizada em comparação com as restantes divisões que têm buracos nos tijolos e deixa passar o vento gelado, os furos no telhado que deixa entrar água das chuvas e nem vamos falar nos pontos negros e verdes da sujidade, a madeira do chão apodrecida e a tinta descascada das paredes. O cheiro a mofo e a podre é camuflado com as flores renovadas diariamente e pelo vento que entra por todos os cantos, mas a maior vergonha da casa é os animais que circulam pelos buracos das portas e paredes, os ratos são praticamente animais de estimação da casa, os pássaros fazem os ninhos nos buracos do telhado e já correm tantos gatos entre a casa e o jardim que nem os contamos.

Foi sempre assim desde que me lembro, as roupas duram e perduram até passarem de roupas a trapos de limpar o chão, os sapatos levam remendos e são cozidos vezes sem conta até o pé não caber mais, por isso, eu tenho sempre que guardar muito bem as roupas e calçado melhores porque o dinheiro nesta casa é como buracos na parede, desaparece sem darmos conta e aparece sempre mais alguma coisa para arranjar. Ela gasta o dinheiro em futilidades para ela porque quer bancar de dona de casa bem vestida e cheirosa nos dias de visita, mas deixa a casa quase sempre à mingua a comer sopa de batata e couve se houver no quintal. E deixa aparecer mais um buraco, mais um rato, mais um objeto partido, mas continua a achar que não é prioridade.

Ainda há segundos vi passar mais um rato ou ratazana, sinceramente nem faz diferença porque já convivo com eles há muito tempo, ouço os seus chiares e as brigas por causa de alguma migalha que roubam da cozinha. Às vezes tenho inveja deles, eles conseguem passar pelos buracos nas paredes e na ombreira da porta, caminham pelo chão e trazem sempre umas migalhas de pão ou um pedaço de comida que caiu no chão. Também queria ser um rato para poder ir buscar só umas migalhas e satisfazer temporariamente a fome que consume só o cheiro da comida, as paredes do meu estômago e o que me sobra de alma.

Quando tenho forças, tento assustar os ratos na tentativa eles largarem as migalhas e eu puder comer, mas são muito raras as vezes que eles largam e se fizer muito barulho, ela pode chatear-se e cortar-me a comida. Ela já me cortou muitas vezes a comida porque dizia que me porto mal e estava muito gordinha, mas quando temos visitas, ela manda-me vestir decentemente e não abrir a boca para ninguém senão ia para a gaiola até o dia seguinte. O lado positivo das visitas é que podia roubar alguma comida para esconder nos bolsos improvisados dentro do vestido e guardar para mais tarde, e quando ela estava a olhar, tirava apenas uma fatia pequena de bolo e comia pão simples para que não implicasse comigo. Ela seguia-me com os olhos para verificar se comia demais e lançava-me o olhar de "eu estou de olho em ti", por isso, oferecia-me para ir buscar comida para as visitas e assim, tinha alguns segundos para colocar algumas migalhas na boca e engolir quase inteiro sem deixar marcas.

Tirando isso, apenas tinha autorização para ir à escola, mas ela ia-me pôr e buscar, garantindo que não tinha tempo para brincadeiras nem correr o risco de eu contar alguma coisa. Tinha amigas que tentavam pedir-lhe, mas ela recusava sempre e explicava que tinha bastantes tarefas para fazer e estava ocupada a treinar para ser uma boa esposa no futuro. Infelizmente, depois de tantas tentativas, elas deixaram de pedir para ir brincar com elas e começaram a chamar-me de esquisita porque sou controlada pela minha família. Na escola, aproveitava para brincar numa zona mais escondida e sempre em alerta porque não sei até que ponto ela estaria a controlar-me. Olho em volta umas 50x a cada minuto, com o coração feito um motor de carro e tinha sempre a sensação que ela me está a espionar, quase pareço paranoica e nunca contei a ninguém a verdade por receio que ela descobrisse e me castigasse.

Quando terminava as aulas e soava o alarme, começava os suores frios e o coração a palpitar, porque já sabia que estava de regresso ao inferno. No caminho limito-me a falar dos conhecimentos que aprendi e as notas que tive, não estando autorizada a valorizar ou partilhar as brincadeiras com as outras crianças. Chegando a casa, sou pesada para verificar se comi demasiado na escola e se preciso fazer dieta, se tiver uma grande alteração de peso, não poderei jantar e terei que passar as horas seguintes apenas a estudar para ser a melhor e dormir quando me derem a autorização. Já pensei em fugir e esconder-me por aí, com uma pequena mochila da escola e alguns mantimentos, mas seria facilmente encontrada e iria permanecer dias no quarto gelado e repugnante, passaria fome e possivelmente, nem ia sobreviver.

Entretanto, há pouco tempo tive a minha mudança para mulher e a ela (a minha mãe) demonstrou-se radiante e começou a procurar possíveis candidatos a meu marido, o meu pai limita-se a aprovar ou desaprovar até encontrar o homem que ele considere adequado. Eu só quis esconder-me quando comecei a ter dores e ver sangue no papel e na roupa, parecia que me tinham esfaqueado, a vergonha pulsa no meu comportamento e, se antes as coisas eram difíceis, com isto, só pioraram. Como passei a ser mulher, ela começou a obrigar-me a fazer cada vez mais coisas e deixei de ter tempo para o castigo, mas era obrigada a estudar antes de comer e só podia comer se soubesse a matéria na ponta da língua. Comecei a cuidar das limpezas, depois da roupa e também das compras, até que, uns meses depois, também tive de começar a cozinhar:

- Hoje fazes o jantar e espero que esteja tal como te ensinei senão sofrerás as consequências. Já és uma mulher e tens de saber cozinhar para cuidar do teu marido e dos teus filhos no futuro.

- Com certeza, não irei errar.

Limitei-me a reproduzir a mesma sopa que ela me repetiu vezes sem conta, verifiquei diversas vezes o sal e os condimentos, limpei a cozinha e coloquei a mesa enquanto aguardava a ordem para servir a sopa. Eles sentaram-se e eu comecei a servir cuidadosamente para não servir fria demais nem em quantidades erradas, depois esperei que me autorizassem a servir-me com o limite de duas conchas de comer. A sopa estava igual à dela, mas limitei-me a comer calmamente e a saborear a sopa que é bastante rara em casa e aproveitar o calor da sopa para aquecer o corpo. Não posso comer mais depressa senão considerar-me-iam esfomeada e ingrata pela comida que me dão, mas também não poderia ser muito demorada senão iriam considerar-me preguiçosa.

Queria responder à letra e falar tudo o que tenho entalado na garganta, mas não ficaria bem na "etiqueta" reclamar com ela, por isso, limito-me a conter a explosão e engulo o ódio. Ela esperou todos os anos que eu alcançasse o estatuto de mulher cá em casa, assim ela tinha uma razão plausível para me obrigar a fazer as tarefas que ela não queria, podia ter uma empregada por conta dela enquanto ela podia ir descontraidamente às compras, tomar chá com as amigas e outras coisas. A empregada limpa e cozinha, inclusive faz as tarefas que são obrigação da mulher casada e não minhas como coser a roupa do meu pai, mas ela justificasse com a velha frase "já és uma mulher, tens que aprender para o teu marido" e o pai acaba a concordar com ela.

Depois de arrumar tudo, pude ir estudar mais um pouco e manter as notas brilhantes como os meus pais gostam de se vangloriar, e depois fui descansar a pensar na matéria que estive a estudar. Apesar de ser a empregada da casa, ainda me obrigam a estudar tudo, porque querem esfregar na cara dos amigos que têm uma filha inteligente e que poderá chegar a tirar uma graduação (infelizmente, não terei tempo disso, mas vale a pena acreditar no sonho). Felizmente, já me habituei tanto ao frio que o meu corpo raramente se arrepia e dá sinais de frio, visto várias roupas umas por cima das outras e escolho-me como um gato para o cobertor me tapar por inteiro. Por vezes, os pés ficam dormentes com o frio, as unhas ficam roxas e as mãos tremem como um sino depois de batido, porém não posso queixar-me nem mostrar insatisfeita porque consideram-me com tendências luxuosas.

Fecho os olhos e penso em coisasquentes como cobertores, fogo e café quente, isso calma-me e faz-me aquecer aalma, iludindo o corpo com uma sensação de conforto falsa. O corpo amolece docansaço e do trabalho duro, o calor temporário do vapor da minha respiraçãoaquece, e os olhos fechados levam a minha imaginação criar um cenário de quartoperfeito, e antes que pudesse aperceber-me da verdade, já adormeci e estou empaz. 

O Amor e a Morte, vencem o mais forte (Edição Especial)Onde histórias criam vida. Descubra agora