Prólogo

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Prólogo

Hana Tsukaza.

O mundo havia mudado.

Eu nunca havia vivido uma outra época. Não conhecia nada diferente da realidade em que havia nascido. E ainda assim, eu sabia que não havia nada igual ao que já foi há mais de cem anos atrás. O mundo havia, drasticamente, mudado. Eu conseguia ler isso no ar, conseguia ler isso nas mudanças de estações, nos olhares, nos sorrisos, nos toques, nas palavras... Se havia alguém para culpar? Quem sabe, talvez houvesse... Todavia, mesmo que não houvesse a certeza de um culpado para condenar, a humanidade havia escolhido os responsáveis há muito, muito tempo. E eu nunca fui diferente deles. Em algum lugar dos estilhaços que me moldavam, algo também me sussurrava que eles eram os responsáveis.

Em dias menos atribulados e menos interessantes, eu ainda conseguia lembrar da primeira vez que conheci um demônio. Os chifres que se moldaram a partir de névoas negras, as unhas que se tornaram afiadas, os dentes perfeitamente brancos crescendo em uma velocidade que causava arrepios... Conseguia lembrar de cada maldito detalhe. E tudo que bastou fora apenas um simplório jantar de família, em um restaurante no centro de Tokyo, uma mesa vizinha com alguns bêbados e uma garota cortando sua mão ao quebrar uma garrafa de vinho. E, como se tivesse sido moldado pelas chamas do inferno, um homem em outra mesa a imobilizou e tocou o sangue com os próprios lábios, mostrando um sorriso perverso quando o gosto daquele líquido adentrou sua boca.

Eu nunca havia visto tanto sangue em todos aqueles meus revoltados e ingênuos quinze anos de vida. E quando algumas gotas daquele sangue respingaram em nossa mesa, em mim, senti que poderia morrer exatamente onde estava. Senti que qualquer um poderia morrer exatamente onde estava, e talvez por esse motivo nem um único desgraçado naquele restaurante ousou mover um único músculo enquanto a morte vagarosamente sugava a vitalidade daquela garota.

E assistindo gotas de sangue voarem nos meus pais, na minha irmã e no meu jantar, descobri o quanto temia as asas de penas metálicas daquela espécie; o quanto a ideia de vê-los me aterrorizava; o quanto aqueles chifres poderiam me causar pesadelos e, principalmente, o quanto aqueles dentes e garras poderiam facilmente subjugar toda a minha efêmera existência e manchar com sangue todos os próximos anos da minha vida.

Apesar de tudo, assim como todos no restaurante naquela noite, eu tive que fazer descer pela minha garganta a cena que havia ficado travada nela. Eu precisei aceitar que coisas assim poderiam acontecer, tive que aceitar que nada daquilo poderia ser mudado, porque nunca havia sido em mais de mil e cem anos da história da humanidade. Contra a minha vontade, aceitei que os demônios não deixariam de existir e que deveria aprender a conviver com todos eles.

E mesmo após presenciar acontecimentos muito piores que aquele ridículo e pequeno acidente, eu podia me atrever a dizer que havia aprendido a coexistir com cada tipo de ser daquela espécie. Se eu quisesse, poderia me orgulhar ao falar sobre quem eu era e o que fazia, e como eu poderia. E ah... Havia momentos em que eu talvez pudesse ter sentido prazer demais em fazê-lo.

E então, havia ele.

Provocando, xingando, seduzindo, amando, assassinando; observando a humanidade como um leitor curioso que, como se tivesse todo o tempo do universo enjaulado entre os dedos, não sentia a necessidade de tentar adivinhar como terminaria aquele livro que lia tão vagarosamente.

Era como se não soubesse o quanto cada centímetro do que era me enlouquecia.

E... Eu precisava saber mais.

Kai Kubokawa.

Haviam muitas coisas na minha mente. O tempo inteiro.

Eu tinha bem mais que trezentos anos de vida para lembrar e guardar, e bem mais que dez ou vinte pessoas para proteger, tinha toda a Tokyo. Assisti momentos históricos da humanidade com os meus próprios olhos e presenciei cenas que genuinamente gostaria de esquecer. Vivi e lutei ao lado dos últimos samurais, estive lá até que o último deles havia sido extinto; também vivi ao lado de livros, e também estive lá quando o último deles havia sido extinto. Eu poderia assegurar que carregava comigo muito mais do que a maioria dos humanos jamais poderiam imaginar. E ainda assim, jamais conseguiria pôr em palavras ou fórmulas os segredos por trás do funcionamento da minha mente.

Eu não conseguia lembrar quase nada sobre a primeira vez em que me transformei em um demônio, ou a primeira vez em que pensei estar apaixonado. Podia lembrar perfeitamente do momento em que segurei uma espada pela primeira vez, assim como poderia lembrar sobre a maioria dos lugares em que estive, mas mesmo que me esforçasse, não saberia dizer como me senti ao ver chifres negros crescendo em minha cabeça ou ao ver a esclera dos meus olhos se tornar negra enquanto o resto mudava para vermelho... Tudo isso sempre havia sido tão natural para mim quanto as estrelas nos céus.

Por outro lado, haviam coisas que eu simplesmente sabia o quanto me afetariam no exato momento em que as vivia, coisas que sabia que jamais esqueceria; pessoas, lugares, cheiros e gostos dos quais eu nunca poderia me livrar.

E, em meio a todos os tipos de informações e experiências que me moldavam no que eu era, no que eu sempre seria, haviam coisas transcendentais.

E então, havia ela.

Provocando, xingando, seduzindo, amando, assassinando; passando as mãos por entre os seus cabelos ruivos, perdendo o dom da fala sempre que eu movia as minhas asas diante dela e com um olhar distante sempre que pensava sobre o seu futuro.

Era como se não soubesse o quanto cada centímetro do que era me enlouquecia.

E... Eu precisava saber mais.

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