Capítulo 12

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Tokyo, 2437.

Kai Kubokawa.

A chuva lavou do ar o cheiro irritante da primavera. O cheiro do asfalto molhado e o som das gotas contra o teto do prédio pequeno dominavam os meus sentidos completamente. Era útil. Sentir apenas o que humanos podiam sentir ajudava o meu corpo a esfriar. E eu precisava esfriar.

Ergui uma das pernas no sofá, meu pé descalço roçou contra o couro marrom. Eu recebi a sensação e a ignorei. Aquilo era bom. Eu estava voltando ao controle do tato também.

No silêncio da livraria, ouvi minha respiração com perfeição quando exalei. Deixei que meus olhos vagassem pela chuva através da janela. Uma chuva de primavera. Elas começaram surpreendemente rápido, ou talvez eu tenha andado ocupado demais para notar o tempo passar... Eu nunca notava o tempo passar, de qualquer forma.

Mais algumas semanas e então seria verão. Festivais, comoções, aglomerações, humores alterados pelo calor e luzes fortes. Os humanos acabam com oscilações de humor que deixavam os temperamentos mais difíceis, e os demônios ficavam inquietos. Perigosamente inquietos.

Esfreguei os dedos sobre os olhos, buscando afastar o pesar incômodo que havia se agarrado a eles. Meus olhos captaram os detalhes com facilidade quando os abri novamente; viam as gotas da chuva escorrer pelo vidro da janela, viam pela minha visão periférica o meu cabelo roçar o ombro. Eu também estava voltando ao controle da minha visão. Bom.

Toda a situação dos meses sem sangue precisava estar controlada até o verão, ou os humores poderiam interferir da forma mais desconfortável e causadora de problemas possível. E então eu teria que lidar com demônios me trazendo reclamações e assassinatos. Na verdade, eu estava ignorando que o mais inteligente para a minha situação seria evitar ao máximo estar no meio de assassinatos, solucionando banhos de sangue causados por bestas irresponsáveis e hedonistas demais — não era como se eu fosse muito diferente, no entanto.

Toquei meu pescoço com a ponta dos dedos. A pele era agora glacial. Me permiti encostar contra o sofá, apreciando a inercia do sangue e a indiferença dos meus nervos. Os pensamentos fluíam. Era tão excessivamente deliciosa a sensação que a lucidez me trazia...

Eu poderia esperar para ver se teria alguma sorte. Talvez quando o verão chegasse e então o mês das águas, a inquietação e intensidade das pessoas pudessem ser lavadas nas chuvas. Eu poderia também apenas aproveitar a calma doce da primavera enquanto ela estava aqui. No entanto, ao invés de pensar sobre problemas futuros e sobre problemas que não me pertenciam, eu deveria pensar primeiro em me resolver. Quando chegasse o verão as pessoas ficariam inquietas, mas por enquanto, eu era o único inquieto.

Não por culpa dos humores ou do maldito cheiro de flores no ar, me deixando confuso como o inferno quando estava no céu, mas por culpa de sensações que eu não conseguia solucionar com clareza. E eu poderia facilmente admitir que ver a situação de forma turva e não resolvê-la me deixava uma sensação profundamente incômoda e enraizada de que deveria estar fazendo algo para mudar isso. Assuntos inacabados nunca me apeteciam, qualquer um que estivesse comigo por dez minutos já saberia disso.

Era sobre Hana. Eu tinha certeza que era sobre Hana. Mal fazia uma semana que ela havia me contratado, e eu precisava colocar entre nós todos os limites possíveis. Eu não me preservava o suficiente para fazer isso por mim, mas observá-la e lidar com ela ao longo da semana poderia quase me causar irritações na pele.

Era como ver alguém respirar pela última vez. Ela estava sempre respirando pela última vez. Não foi difícil deduzir que essa era sua única tentativa de se reeguer depois de ter perdido as pessoas que perdeu. Algumas pessoas — e nisso incluo também demônios — lutavam por toda a sua vida para não passar exatamente pelo que ela havia passado. O luto e a ausência poderiam reduzir um corpo ao pó e estilhaçar uma mente sã.

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