- Eu não espero que você acorde...
O jovem, ainda sonolento, ouviu seu pai começar um discurso no pé da sua cama. Provavelmente era mais um daqueles discursos motivacionais de antes das aulas já que faltava uma semana para tal ocorrência, mas Hale não se mexeu, apenas se concentrou em voltar a dormir.
- Eu percebi que nesse ano você quase não saiu de casa, tomei a liberdade de ligar para os seus amigos e nem eles têm notícias suas... Eu como pai, me preocupei, óbvio. - era engraçado seu monólogo. - Você é sempre tão animado e vive me enchendo o saco pra dar uma festa, não vou dizer sim, minha casa é meu templo, nada disso, sem festas e baderna... O que eu quero dizer, Hale, é que talvez hoje seja um dia bom pra você levantar da cama, sair do quarto, pegar um sol. Está 27 graus agora e são dez da manhã.
Satisfeito com o silêncio no cômodo, o Doss mais velho deu dois tapinhas no colchão e caminhou até a porta, a fechando quando saiu. Hale estava certo sobre o discurso motivacional mas não esperava que fizesse efeito, na verdade ele não esperava que seu pai tivesse percebido que ele estava deprimido nessas férias, ele estava consciente de que suas brincadeiras ilimitadas só eram legais pra ele mas nunca foram por falta de aviso dos seus amigos, amigos quais não paravam de procurar por ele nas férias. Hale se levantou e encarou seu reflexo no espelho, o rosto inchado de sono, sobrancelhas despenteadas e o cabelo começando a formar cachos grossos com mais de oito centímetros de comprimento, não havia saído de casa pra absolutamente nada nesses meses, apena ia ao mercado ou na quadra de basquete do bairro, não percebeu o tamanho do cabelo já que o escondia no capuz do casaco ou um boné sujo. Depois de um banho e finalmente desembaraçar os fios, o jovem desceu para a sala, sendo recepcionado pelo pai.
- Olha quem acordou... - disse sem desviar o olhar da TV. - Dormiu bem? - Raymond sempre fazia essa mesma pergunta todo dia.
- Bom dia... Eu dormi como uma pedra. - se lembrou do comprimido do remédio de insônia que havia surrupiado de seu pai como nas últimas semanas.
- Eu percebi. Tá um belo dia de sol la fora.
- É... acho que eu vou tomar um pouco de sol, vitamina D é bom.
- Faça isso.Mesmo dando passos depois de abrir a porta da frente, a entrada era protegida por uma cobertura vermelha em caso de chuva ou sol muito quente como faria aquela tarde, estava realmente uma bela manhã, céu tinindo um azul celeste, crianças brincando na rua, as vizinhas fofocando nos gramados e idosos molhando a rua, um dia alegre para final de julho.
- E aí, garotinho.
Era uma voz conhecida, uma voz feminina grossa e despojada, ele procurou até que encontrou, usando um short florido e uma camiseta do Mickey, Helen Doss o encarava com um sorriso sem dentes.
- Puta merda! HELEN! - Hale correu para abraçar a irmã mais velha, uma versão mais jovem e vermelha da Sarah Silverman.
- Me abraça! - ela gritou sorrindo e ele assim o fez, apertando e girando a irmã. - Meu Deus, você tá comendo ração pra cavalo?!
- O que você tá fazendo aqui?
- É a casa do meu pai?
- Sim, mas você nunca vem aqui... Têm uns sete anos.
- É por uma boa causa. - ela piscou. - Mas deixa eu ver você... - Helen passou a mão no rosto do irmão. - Nossa, Hale você ta enorme. ISSO AQUI É UMA BARBA RECÉM RASPADA?!
- Já pode parar de me chamar de garotinho.
- Nunca. - ela sorriu vitoriosa. - Você sempre vai ser aquele garotinho medroso que mordia o braço do Woody.
- Era do Buzz, Helen.
- Dá no mesmo. - ela gesticulou e o irmão a imitou fazendo careta. - Para. Tá um belo dia... sabe pra que?
- Não. - Hale já sabia o que ela queria dizer.
- Sim.
- Não e não.
- Sim e sim, garotinho. TORTA DE LEGUMES DA HELEN!
- Que gritaria é essa? - Raymond apareceu a porta. - Helen?
- PAPAI! AI, QUE SAUDADE DE VOCÊ, VELHO!A morena correu para os braços do pai e Hale revirou os olhos, virando o corpo em direção aos dois que estavam na porta debaixo de uma cachoeira de lágrimas, ele respirou pesado, algo dentro dele estava incomodado por sua irmã estar ali depois de anos mas ver seu pai animado e finalmente fora da poltrona era reconfortante. Depois de risadas e fofocas na sala, um jogo de futebol e algumas cervejas, o velho Raymond havia dormido na grande cadeira vermelha, o rapaz observava o sol bater nas flores no batente da janela que cresciam atrás da TV, se lembrou que pareciam com flores que Betina rabiscava pela escola sempre que tinha um lápis, uma caneta ou algo pontudo na mão, ela deixava seu rastro marcado por flores tortas, Hale riu com o pensamento.
- Pensando em onde vamos conseguir legumes frescos, garotinho? - Helen disse vendo o irmão sorrir sozinho no último degrau da escada.
- Não exatamente. E a gente não tem que fazer essa torta horrível.
- A torta é deliciosa, ta?
- Você colocava massinha e geleia!
- Eu tinha 11 anos, tudo era gostoso com geleia!
- Até a parede? - Hale franziu o cenho, a lembrando de uma certa vez.
- Olha só, foi UMA vez só!
- Tinha marca de mordida na casa toda.
- Eu queria saber se as paredes tinham gostos diferentes.
- Descobriu que tem gosto de papel e cola com quantos anos? 20?
- Vai implicar comigo até eu ir embora?A mulher terminou de descer a escada, passando pelo irmão, com os cabelos molhados de uma recém lavagem, e indo pra cozinha procurar farinha.
- Você vai embora?
- Não espera que eu more aqui... Né?
- N-não sei... Não sei o que esperar. Eu não conheço você.
- Eu não sou uma assassina foragida, antes que você pense isso.
- Não pensei mas agora eu to pensando. Isso passa muito em filmes, parentes que voltam do nada é por que estão fugindo.
- Eu estou.
- Pai...
- Estou fugindo da minha vida insuportável com um noivo insuportável e um trabalho insuportável.
- Como pode ter uma vida insuportável em Nova York? - Hale se sentou na bancada que separava a sala da cozinha.
- Irmãozinho, a vida não é como nos filmes. Nova York não é uma cidade cantante e cheia de oportunidades, talvez sim mas pra quem é artista ou modelo. Eu me formei em finanças, eu fico sentada seis horas do meu dia numa cadeira anotando números, cinco ou seis dias por semana, dependendo do humor do Heith.
- Quem é Heith?
- Meu chefe, Oliver Heith. Sem falar do Buck que ta desempregado e fica o dia inteiro assistindo Animal Planet e coçando a barriga do Kole.
- Quem é Kole?
- Um gato. Que nem é nosso.
- Aí você fugiu pra ca?
- Sim, mas por uma semana. Eu falei com Heith e pedi minhas férias pra vim ver vocês, já que a Margareth está no Canadá. - ela se referiu a mãe.
- Nunca falamos esse nome aqui.
- É até bom...
- Mas me fala desse teu noivo aí... Noivo.
- Ele me pediu em casamento há meses. - ela mostrou a mão com a aliança simples e fina. - Sempre sonhei em ter um anel com uma pedra do tamanho de um coração de boi, mas eu ganhei isso... Foi de coração, pelo menos.
- Ele é legal com você? Se não for, eu juro...
- Você não vai fazer nada, garotinho. E o Buck é o Buck, ele é inteligente, ama os animais, carinhoso, canta mal, cozinha pior ainda... - Helen falava e Hale percebeu seus olhos brilhando a cada palavra.
- Você ama ele, da pra ver.
- Se eu não amasse, eu não estaria com ele há três anos. Bom, a conversinha está deliciosa e eu vou adorar te contar sobre toda a minha vida detalhadamente nesses sete anos, mas precisamos dos legumes. Na geladeira só tem resto de lanche, bacon e ovos para alimentar um exército e cervejas, é isso que vocês andam comendo?
- Eu me viro quando dá e o papai come umas tortas de frango que ele faz, eu como o que sobra da torta.
- Nossa, vocês não se cuidam. Enfim, onde vende legumes por aqui?
- Eu não... Sei. - Hale resmungou ao se lembrar da única tenda de legumes frescos do bairro.***
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Os erros que cometemos quando éramos cegos
Teen FictionJá parou pra pensar que você poderia ter feito muito mais por aquela pessoa que você gosta ou gostou? Ter feito ela ficar... Mas e se o que você fizer ou quer fazer é errado de muitas formas?