O grande ato

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Havia se passado uma semana desde que Helen havia deixado a cidade e junto com ela, levado um pouco e alegria. Raymond, que quase não mantinha um diálogo com mais de dez frases, agora dizia muito mal mais de duas por dia, resmungava que sentia saudade da filha e que ela havia aprendido a cozinhar, a viver sozinha sem precisar de ninguém, muito menos dele. Consequentemente, isso abalava Hale, era seu pai e sua irmã, em sete anos aprenderam a viver só eles dois, mas agora tinha uma "pegada" da irmã dentro de casa e lembranças  novas, Helen desbloqueou um novo conjunto de sentimentos, ampliou sua visão sobre as coisas que sentia e o que sentia por uma certa garota durona. Incomodava vê-la perto e longe ao mesmo tempo, ele queria fazer tudo voltar ao "normal", daquele jeito não estava bom. Mas não importava mais, já que na semana anterior, havia escutado Betinha dizer que não gostava dele, nada havia mudado.
Era dia de ensaio da peça e Hale pediu para Greg o acompanhar, já que Peter e Chase estavam na aula de Química prática no laboratório, mas o rapaz estava mais nervoso que ele, roía as unhas e balançava as pernas, tirando a concentração de leitura das cenas.

- Dá pra parar?
- Desculpa, to ansioso.
- Com o que?
- Também queria saber... Eu nem sei se eu deveria estar aqui.
- Claro que sim, é o jeito da gente se formar.
- Eu ainda tenho um ano aqui, da tempo de recuperar.
- Você quer reprovar esse ano?
- Não!
- Então para de falar merda.
- DOSS, VEM AQUI! - Carol o chamou.

A baixinha estava sentada na beira do palco, revisando as falas e cenas com os papéis nas mãos. Seewet era o que poderia chamar de inferno ambulante.

- Não vai cortar o cabelo?
- Foi pra isso que você me chamou? - Hale revirou os olhos.
- Não, Doss. O que houve? Você não fez nenhuma piadinha nessa semana. Tá deprimido?
- Eu to bem, Carol.
- Mesmo que não esteja, fique. Hoje você tem que ensaiar cenas com a Tini. - ela apontou para a garota que usava coques no cabelo.
- Não tem outra? - resmungou.
- Tá doido? Poleman é a nossa Julieta e você o nosso Romeu, vocês tem química e precisam ensaiar, você precisa ensaiar ja que não sabe a peça.
- Que quimica? Não gosto da Poleman.
- Não me importo, Hale! Você tem que participar do Teatro, você é a porra do Romeu, você tem que ensaiar essa merda!

Ele poderia gritar de volta, mas não sentiu vontade, não era divertido. Hale pulou para cima do palco e se aproximou de Betina, que pintava as flores da sacada de Julieta distraída. Ela parecia estar em outro mundo, ainda fora daquela órbita que ele estava, mas não do jeito perdida e sim vivendo em algum pequeno planeta dentro dela.

- Temos que ensaiar. - foi o que saiu de sua boca.
- Eu sei. - bufou, fechando os olhos, não queria lidar com aquilo.
- Eu não queria, mas sou obrigado.
- Tá, ta...

Betina tirou do bolso da saia uma quantidade de papel A4 enrolado e passou os olhos, Hale deu passos para trás para que pudesse enxergá-la melhor, eles estavam quase na parte inferior do palco, ainda dava pra ver Carol reclamando com Moira, todos aqueles acentos, as luzes fracas que iluminavam os alunos que estavam ali. Betina se prontou e respirou fundo, ele começaria.

- Se minha mão profana o relicário em remissão aceito a penitência: meu lábio, peregrino solitário, demonstrará, com sobra, reverência.
- Ofendeis vossa mão, bom peregrino, que se mostrou devota e reverente. Nas mãos dos santos
pega o paladino. Esse é o beijo mais santo e conveniente. - a garota evitava o olhar, sabia o que estava por vir.
- Os santos e os devotos não têm boca?
- Sim, peregrino, só para orações.
- Deixai, então, ó santa! que esta boca mostre o caminho certo aos corações. - Hale deu três passos a frente, ficando à um palmo dela.
- Sem se mexer, o santo exalça o voto.
- Então fica quietinha: eis o devoto. Em tua boca me limpo dos pecados.

Betina esperou, olhando na direção de seu rosto, o corpo todo ardia, ela sabia que não poderia acontecer mas era a cena da peça, só faltava o beijo para a próxima fala, mas não aconteceu. Hale se perdeu em pensamentos e dores no estômago, que parecia subir e descer pela sua laringe e traqueia, ela não queria, ele não faria.

- Que passaram, assim, para meus lábios. - Betina enfim disse.
- Pecados meus? Oh! Quero-os retornados. Devolve-mos.
- Beijais tal qual os sábios...
- A-agora entra a... Moira. Ela é a ama, não é? - Hale folheava as páginas.
- Isso ficou horrível. - a garota encarava o teto. - Isso não vai dar certo, a gente se odeia.
- Verdade.
- E... que nojo, beijar você. Deus sabe lá onde você passou a boca.
- Não foi em você, relaxa. - disse e Betina corou. - Eu desisto, já não queria fazer isso... Fora que a gente você fala os textos atrasados.
- O que você entende de timing? Você vive gaguejando. "A-agora entra a Mo-Moira". Patético, Hale.
- Eu era gago quando era pequeno, Betina. - Hale alterou a voz daquele jeito troglodita, fazendo agora a garota ficar toda vermelha.
- Não grita comigo.
- Não gritei. É só que você me irrita! E não é de um jeito sadio, eu fico puto perto de você.
- Sadio? Você me sequestrou e me largou na rua!
- Eu te levei pra casa!
- Seu arrependimento bosta não me convenceu! E... E se você tivesse ido embora, eu poderia ter sido sequestrada de verdade! Estuprada, morta! Você não pensou nisso, Hale?! O quão perturbado você é pra entender que o que você fez foi doentio?!
- Eu entendi! - Hale respirava forte. - Eu sinto toda noite aquela merda, Betina! Eu sei que eu sou um merda. E mesmo pedindo desculpas, você me faz lembrar disso todo dia!
- O que mais eu poderia fazer?! Eu não consigo sair na rua a noite com medo que seja um babaca me intoxique com cloroformio e me jogue no carro.
- Vocês poderiam brigar em outro canto? - Carol interrompeu. - Sério, estão chamando atenção pra seja lá o que for isso.
- Carol, isso não vai dar certo! Dê o Romeu pra outro idiota, eu não aguento ficar perto dessa garota!
- Hale, espera aí, não é assim.
- Não, eu não quero! Cansei dessa palhaçada de teatro, que se foda se eu repetir todo o terceiro ano! Eu odeio essa merda! Eu odeio a escola, eu odeio ter aturar vocês, eu odeio seus gritos, eu odeio como vocês são prepotentes e egoístas, eu odeio flores e borboletas, EU ODEIO VOCÊ, POLEMAN!

Hale jogou as páginas de ensaio da peça no chão e saiu atropelando a porta lateral, deixando todos ali em um murmúrio e uma Betina travando o choro, um choro dolorido que estava a sufocando, mas não ia se permitir chorar na frente de todos por ele.

Os erros que cometemos quando éramos cegosOnde histórias criam vida. Descubra agora