Você mente

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Toda manhã ela penteava cada lado do seu cabelo cem vezes e mesmo assim ele ficava cheio e volumoso, ela vestia o uniforme por cima de uma de suas inúmeras camisetas motivacionais, naquela manhã ela escolheu vestir uma saia de bolas coloridas e meias verdes, sabia que Betina gostava das meias verdes. Beijou a foto de seu pai perto da câmara de suas cinzas e saiu de casa, trancando a porta com o chaveiro de penas que havia ganhado da senhora Poleman, subiu na sua bicicleta azul e desceu a rua em direção a escola. Depois da confusão no auditório de Betina e Hale, a Poleman mais nova estava numa contínua transição entre raiva e melancolia, socava os armários quando via de longe Hale passando com os rapazes, ficava quieta em seguida quando percebia que ele estava ignorando sua presença na vida, não aceitava que haviam chegado àquele ponto mas não sabia se poderiam voltar ao normal nem sabia o que era o normal. Moira chegou na frente da escola e Betina estava sentada nos degraus da frente, com a cabeça entre os joelhos, fazendo o cabelo cobrir suas pernas.

- Tini, trouxe queijo frito.
- Hm.
- Amiga, não é possível que você esteja mal... Pelo Hale. - sussurrou a última parte.
- Eu não estou mal por ele.
- Aham, sei. Chega, né? Assume.
- Isso é inaceitável, Moira. Como eu posso estar mal por ele? O que ele fez pra mim que eu estou mal por ele? De onde saiu essa... Betina Empatica?
- Ela sempre existiu, mas nunca com o Hale... Amiga, ele me contou que vocês ficaram juntos no dia da tempestade, que vocês estavam...
- Perto. A gente tava muito perto, eu senti a respiração dele e ouvi meu coração bater no meu ouvido... Ele tem medo de escuro e eu de trovões, eu consegui ficar perto dele mas não consigo ficar perto dele! Ai, que ódio!
- BEIJA ELE, BETINA! DESCONTA ESSA RAIVA NUM BEIJO TOSCO E APAIXONADO!
- Eu não sei se quero, eu acho que não quero. Eu não confio no Hale, eu não sei o que sentir, eu me sinto furiosa e ao mesmo tempo... Sinto falta da raiva sadia que ele me fazia sentir todo dia e não esse ódio, esse nojo.
- Você aceitou as desculpas dele? Ele disse que pediu.
- Sim, mas eu nem parei pra pensar nisso. - Betina passou a mão no cabelo tentando arrumar. - Talvez eu precise conversar com ele.
- Opa. Demos um passo, você reconheceu que precisa de um diálogo. Quer que eu vá juntinho?
- Não, amiga. É uma conversa que eu preciso de espaço.
- Você quer dar pra ele?
- Moira, não. Mas eu não quero você la comigo, ele vai achar que é uma intimação ou uma intervenção.
- Acho que eu entendo.

***

Era hora do almoço, o refeitório cheio como de costume, Betina estava em pé enquanto Moira a apoiava de longe, fazendo joinhas e sorrindo, Hale estava com Peter conversando perto da lixeira, parecia que o amigo havia conseguido engolir queijo pelo nariz.

- Olá, oi. - disse rápido.
- Olá, amiga. - Peter brincou, mostrando as cozinhas nas bochechas, a garota suspirou.
- O que você quer? - Hale respondeu.
- Falar com você.
- Ok, vazei. - Peter saiu, já que fora ignorado.
- Você quer falar comigo? Você, Betina?
- Olha, não dificulta isso, ok? A gente pode conversar ou não?
- Aqui? - ele olhou em volta e todos falavam alto e passavam por eles.

Como Betina demorou pra responder, ele fez o que sabia fazer melhor, ser mandão, a pegou pela mão e saiu pela porta dos fundos do refeitório, a guiando até um corredor com canteiro de flores entre um prédio e outro.

- Pode falar. - ele a olhava intensamente, buscava respostas mais em seus gestos do que no que falaria.
- Ok, eu vou ser sincera. Eu achava que essa conversa tinha que ser mais calma e não aqui no corredor, o sinal da aula de biologia pode tocar a qualquer momento.
- Bom, temos 33 minutos. - Hale disse olhando no celular.
- Hale, eu te odiei por muito tempo. Agora eu to só com nojo do que você fez, eu lembro e me sinto furiosa, me dá uma falta de ar ruim... Eu não gosto de sentir isso mas eu sinto, você me fez sentir isso por você, entende?
- Entendo. - ele cruzou os braços, a ouvia calmamente.
- Eu não fui feita pra sentir isso. Coisas ruins. Você conhece a minha mãe, ela é a pessoa mais luminosa  que eu conheço, a vovó nem tanto, ela tem sua porcentagem obscura.

Os erros que cometemos quando éramos cegosOnde histórias criam vida. Descubra agora