À sós

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Era domingo de manhã, mesmo no verão, o dia amanheceu com um sol preguiçoso escondido atrás de nuvens cinzas, no dia seguinte seria a volta às aulas e ninguém estava animado, dessa vez pareceu que as férias foram em duas semanas e não em dois meses e meio. Betina estava desenhando de frente pra janela quando viu o primeiro sinal de trovões não muito longe dali, não gostava de dias chuvosos, era barulhento e a horta ficava enlamaçada, inundava a terra e os frutos não cresciam direito. A garota se viu rabiscando flores e borboletas como no dia em que seu pesadelo começou, ele já implicava com ela superficialmente apenas por estudarem na mesma escola, no mesmo horário e as vezes na mesma turma, mas no dia em que ela o enfrentou de verdade, havia se tornado um alvo, ela riu com a lembrança do rapaz caindo sobre as carteiras, não esperava que ele fosse cair com tanta facilidade.

- Coelhinha?

Ouviu sua mãe chamando com a voz longe e olhou sobre o ombro, ela estava na porta maquiada e de salto, com um vestido preto com alças finas.

- Onde você vai? - foi a primeira coisa que lhe veio na cabeça.
- Vou sair com o Ted.
- Domingo de manhã? Com o açougueiro? Vocês vão num festival de porcos?
- Está de mal humor desde que os Doss vieram aqui... - Ava ia fechando a porta.
- Não, mãe. - Betina se repreendeu mentalmente. - Desculpa. É que vai chover.
- Oh, minha coelhinha medrosa. - Ava deu uma corridinha até sua filha, beijando o topo da cabeça.
- Mãe, eu já tenho quase vinte anos, não tem medo de chuva.
- Tem medo de trovões. - Betina não negou. - Bom, eu vou sair com o Ted e volto antes da chuva cair. E não, não vamos a um festival de porcos, o Ted é vegano.
- Que ironia.
- Sim. - Ava riu. - Eu te amo e não sai de casa.
- Fala sério, Ava.
- Estou falando muito sério, não quero você na rua na chuva, muito menos na rua. - Ava ficou de pé, ajeitando o vestido. - Estou indo.
- Divirta-se, mamãe.
- Ava Poleman-Fischer vai beijar na boca. - disse saindo do quarto da menina.

Depois de uns minutos, Betina viu a mãe saindo de casa e caminhando até um Ford SUV 2011, o homem quatro anos mais novo que ela a esperava para abrir a porta, ele acenou quando viu que estavam sendo observados por ela, Ava fez o mesmo gesto e logo entrou no quarto, em seguida estavam indo em direção ao final da rua.
Quando era quase meio de tarde, a chuva caiu com gotas grossas, fazendo barulho no asfalto e nos tetos dos carros, Dinah dormia na varanda da frente e rondava junto dos trovões, Betina sabia que sua avó não tinha medo de desastres naturais, dizia que a natureza tinha direito de fazer o que ela bem entendesse, ela tinha seus costumes já que fora criada numa tribo de índios. Ava não voltou antes da chuva cair como tinha dito, mas havia avisado que estava bem, estava num restaurante vegano protegida da chuva mas, que em caso de supernecessidade, era só ligar que ela voltaria correndo.
Betina estava na sala assistindo TV num volume alto, tentando afastar os som dos trovões, quando quase não ouviu as fortes batidas na porta, se levantou e ficou surpresa ao abrir a porta.

- O que você quer?
- Eu vim com minha irmã. - era Hale, tentava gritar por cima dos ruídos, ele apontou para a morena que acenava de dentro do carro. - Posso entrar?
- Não. O que você quer?
- Falar com você. - ele disse sendo acompanhado de um relampejo que iluminou todo o lugar, fazendo Betina pular.
- Er... Entra. - ela o puxou e fechou a porta.
- Sua vó ta la fora. - ele olhou pela janela.
- Ela fica bem lá, não sei por que.
- Ok... Você ta bem? Tá tremendo.
- Eu to bem, Doss! Fala o que você quer, minha mãe daqui a pouco chega e a gente ta sozinho aqui dentro.
- Se for pra gritar comigo, eu vou embora.
- Eu não sei nem porque você veio, garoto.
- Eu... Eu quero pedir desculpas. - sua voz foi abafada por um trovão a assustou mais do que outra coisa.
- Desculpas pelo que? - agora Betina tremia.
- Pelo que eu fiz.
- Pede desculpas direito, Doss.
- To pedindo, garota. - disse irritado. - Isso é difícil pra mim, eu não peço desculpas.
- É uma grande merda, Hale. E esse pedido de desculpa foi tão merda quanto... Puta merda, eu vou morrer! - Betina disparou quando soou outro trovão.
- Entendi, você tem medo de trovões. - ele riu, se sentindo vitorioso em saber alguma fraqueza.
- Ah, cala a boca.
- Parece que a grande Betina Poleman tem medo de alguma coisa.
- Eu não tenho medo de trovões! - agora dois fizeram estrondo, seguidos de um relâmpago. - Eu tenho sim, eu tenho.

Hale agora ria da garota que parecia tentar se esconder dentro da camiseta como pareceu no dia do teste, ela estava furiosa por isso, ele ser tão presunçoso mesmo estando ali pra pedir desculpas, ria dela disfarçadamente. Num estrondo, a luz caiu, deixando a casa escura e ouvindo só os ruídos das gotas grossas e o ronco da velha Poleman do lado de fora, estava quase anoitecendo, não havia a luz do sol pra iluminar, só o dia nublado.

- Hale... - disse com uma voz afetada mas ninguém respondeu. - Hale!
- To aqui. - ele respondeu com a mesma entonação.
- Aqui onde?!
- No mesmo lugar, Betina! Merda!
- Por que você tá nervoso?!
- Não gosto do escuro. - disse baixo.
- Você tem medo? Ai, que porra! - Betina queria rir, mas sentia sua pulsação nos ouvidos.
- Para de gritar!
- Você é um cagão, Doss!
- Olha quem fala, você é uma criancinha chorona!
- Eu não to chorando, você tá!
- To mesmo!
- Eu... Espera, você ta chorando? - Betina ainda sentia seu peito explodir mas estava curiosa.
- Não mais. - o ouviu fungar.
- Fala sério, eu to presa na casa dos horrores com um bunda mole.
- Olha aqui! - ele a puxou pelo braço com seu jeito bruto, odiava ser acusado de algo que não era.

Um outro trovão estourou alto no céu, fazendo Betina se encolher mais e aproximar seus corpos, ela sabia que estava quase com o rosto grudado em seu pescoço mas não conseguia mover os pés, uma voz dentro de si dizia ladinamente que ele puxar seu braço daquela forma até foi bom, ela se sentia segura perto dele mesmo que ele fosse um erro ambulante.

- Não fala nada. - ela disse em súplica.
- Eu não ia dizer nada.
- Ia sim, ia gritar igual a um asno igual você sempre faz. Mas, por favor, só não fala nada.
- Você me pedindo por favor?
- Doss.
- Ok. Não vou falar nada.

Continuaram em pé ali até os estrondos cessarem, Betina estava abraçando os braços enquanto cantarolava todo o repertório de Britney Spears, foi uma forma de distrair, enquanto Hale mantinha os braços duros nas laterais do corpo apenas a ouvindo. Eles perceberam que estavam quase se tocando, ele sentia o cheiro de seu canelo e ela sentia sua respiração na raiz do couro cabeludo, mas quem daria o primeiro passo?

- Cheguei!

A mulher ruiva abriu a porta, com os saltos na mão e mão cabelo molhado, desfez o sorriso ansioso ao ver o jovem par parados no meio da sala. Deduziu que fosse um meio de Betina não sentir medo dos trovões, mas um meio estranho já que ambos estavam imóveis quando chegou. Os jovens saíram do transe com o susto e Betina correu em direção à mãe.

- Oi, senhora Poleman. - Hale balbuciou ainda nervoso.
- Olá, Hale. Esta tudo bem? - perguntou a filha que estava com a cabeça enterrada em seu ombro, mas não se mexeu.
- A Betina estava com medo dos trovões. - dizia ainda atordoado pelo correr conturbado do dia. - Não sei se ajudei.
- Vai embora, Hale. - Betina disse alto e calma. - Falo com você depois... Só vai embora.
- Ok. Tchau, senhora Poleman.
- Tchau...

O rapaz passou pelas suas com pressa e a menina viu quando ele entrou no Volvo preto de Helen, logo dando partida no carro e sumindo na esquina. Era diferente agora por algum motivo, eles haviam compartilhado um momento íntimo, eles sabiam seus medos, eles ficaram juntos e ele a obedeceu quando pediu para não falar, Betina sentiu seu coração bater descompassado o dia inteiro e inclusive quando ficou perto dele, mas ainda sim sentia aquela confusão que a deixava pior.

***

- Como foi com a garotinha Poleman? Você demorou. - Helen perguntou quando pararam no sinal.
- Ela tem medo de trovões.
- Ah, que dó. Você a abraçou?
- Não...
- Hale, você é péssimo nisso. - ela o olhou com pena.
- Nisso o que, Helen? Eu não sei o que é "isso".
- Você gosta dela.
- Não. - disse mas não parecia convicto. - Não sei.
- Opa, "não sei" é uma resposta péssima mas é melhor que um não.
- Não gosto de falar sobre essas coisas.
- Você ainda é um garoto besta que acha que sentimentos é coisa de garota.
- E não é? Vocês entendem disso melhor do que nós.
- Mas vocês também sentem, Hale. Vocês sentem medo, amor, euforia, excitação, raiva, tristeza, assim como nós. Mas a gente procura saber o que é, ao contrário de vocês que preferem ignorar. Ai, meu Deus, vocês são duas crianças apaixonadas que não sabem que estão apaixonados um pelo outro, eu queria muito estar perto pra ver isso desenvolvendo.
- Não to apaixonado pela Betina, ainda quero rir da cara dela quando ela se ferra. Isso não é estar apaixonado.
- Você já se apaixonou, garoto?
- Não.
- Então você não faz ideia do que está falando.
- Ela é bem orgulhosa, Helen, é engraçado. Ela tava com medo, tremendo de medo... A gente ficou bem perto um do outro mas ela não pediu pra, sei lá, abraçar ela. Abraçar é bom quando a gente ta com medo.
- Você estava com medo, Hale.
- Não tenho medo de trovões, Helen.
- Mas tem medo de ser rejeitado por uma menina tão foda quando a Betina.

E talvez fosse isso.

Os erros que cometemos quando éramos cegosOnde histórias criam vida. Descubra agora