Presos no inferno

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Era mais uma quinta-feira de setembro e o clima na cidade começava a esfriar com a chegada do outono, assim e turma de alunos exemplares do ano de 2020 seriam elegidos e postos no mural de troféus, havia apenas quinze vagas e todos alunos do segundo ano teriam que fazer um teste de três fases: múltipla escolha, redação sobre o tema anual e apresentação no auditório. Nossa protagonista teve a brilhante ideia de criar um grupo de estudos depois da ajuda no Clube de Teatro, assim ficariam até às seis na escola junto do zelador, o Sr. Golding não gostou muito da ideia de ter dois grupos de 20 alunos até a noite na escola, mas era necessário já que não tinham tempo durante as aulas e os intervalos usavam para atividades extracurriculares. Como sempre e bem unidas, Moira e Betina ajudavam a quem tinha dúvidas, elas conseguiam ser umas das mais inteligentes de suas séries, já que iriam competir, queriam que fossem uma competição justa, ensinando o que os outros não sabiam e explicando matéria. Enquanto a morena escrevia no quadro sobre o tema daquele ano, Miscigenação e Rebentação de Espécies, Moira sentara sobre a mesa do professor que disponibilizaram para elas, sem querer percebeu que Betina cantarolava uma música desconhecida e sorria algumas vezes para o quadro.

- O que foi? - Betina sussurrou ao ver a amiga a encarando.
- Você ta sorrindo atoa.
- To? - sentiu as bochechas esquentarem. - Nem percebi.
- Eu sei que não. - Moira desceu da mesa e se aproximou da amiga. - Aconteceu alguma coisa?
- Não... Não que eu me lembre.
- Mulher, mulher...
- Moira, vai explicar o conteúdo e me deixa.
- Não tem o que explicar hoje mais, ja são quase sete horas. Hoje você extrapolou o horário.
- Caceta! E por que você não me avisou?!
- Você tava aí cantarolando e feliz... Eu só fiquei olhando.

Betina juntou os materiais enquanto Moira dispensava os alunos, logo a sala estava vazia. A menina de cabelo verde pegou a mochila e disse que esperaria a amiga lá fora ja que tinha que avisar ao zelador que ainda tinha gente la dentro ou ele a trancaria lá. Estava quase terminando de arrumar a sala e juntar os materiais, quando ouviu as luzes serem apagadas e correu até a porta dupla de entrada, puxando a mochila pesada, não adiantou ja que derrubara os livros no piso brilhante da ALH, desejou estar morta algumas vezes enquanto os juntava de novo, mas era tarde quando ouviu a porta ser trancada.

- NÃO! ME ESPERA, EU TO AQUI! - batia na porta mas o zelador já estava longe, deu pra vê-lo sair no seu carro velho.

Sentiu seu celular no bolso da saia e torceu para que estivesse com bateria o suficiente para ligar pra sua mãe e pedir para que a buscasse na escola trancada, ligou e Ava não atendeu, Betina chutou a porta pois imaginou que sua mãe deveria estar na plantação ou com o "jovenzinho" açougueiro.

- PORRA! - continou chutando a porta. - PORRA, PORRA, PORRA!
- Não acredito.

Ouviu a voz de quem menos queria ver, aquele rapaz alto e agora de cabelo grande, usando apenas a calça do uniforme, segurando a camisa suada na mão e escondendo o cabelo no boné, se aproximando pelo corredor. Hale correu até a porta, gritando assim como ela.

- Ai, só pode ser maldição. - Betina grunhiu. - Não tem ninguém aqui!
- Você não gritou?!
- Eu gritei!
- Tem voz pra gritar comigo mas pra gritar o zelador não tem.
- Eu não vou aturar você com essa petulância sozinha na escola! Liga pra alguém vim buscar a gente.
- Eu vou ligar pra quem?
- Não sei, pro seu pai, pra sua irmã, seus amigos. Quem saiba arrombar uma porta.
- E você acha que eu não sei?
- Por que você ainda ta olhando pra minha cara e não fez isso ainda?
- Por quê tem câmeras em cada canto desse lugar e eu já to fodido demais com o Golding.
- Mas que merda! - Betina gritou. - Ai, que merda!
- Seus gritos me irritam, sério.
- Foda-se, Hale! Eu quero ir pra casa!

Hale respirou fundo, era isso o que lhe tirava do sério, os gritinhos histéricos e cheios de arrogância dela, lembrava quando sua mãe gritava com ele por ser um pequeno Hale rebelde e destruidor de objetos.

- Cala a boca!
- Você enlouqueceu?!
- Você é super irritante! Mandona, chata, cheia de si, arrogante!
- Não me manda calar a boca! Você não é ninguém pra me mandar calar a boca!
- Quer saber?! Se eu vou ficar com você trancado nessa merda, eu vou pra ala de biologia. Fica longe de mim. - Hale deu as costas e começou a dar passous, Betina cruzou os braços e riu.
- Aham... Com tudo escuro?
- Que dormir agarradinho? - zombou.
- Tomara que você morra no escuro, Doss.

Betina pegou sua mochila pesada e deu passos rápidos até a sala de onde havia saído, ela sabia que ele a seguiria, no fundo era o que ela queria, não queria se sentir sozinha naquele lugar imenso e entre ter o Doss e ninguém, preferia o Doss. Dito e feito, o rapaz apareceu dando toques na porta aberta.

- Por favor, não enche meu saco.
- Entre ficar sozinha e ficar perto de você...
- Você prefere ficar perto de mim.
- Eu prefiro estar em casa na minha cama.
- Sou uma boa companhia noturna, Poleman. - disse deitando sobre a mesa de professor.
- Imagino que seja, Doss, mas não pra mim.
- Imagina?
- Na... Não foi isso que eu quis dizer.
- Foi sim. - se apoiou nos cotovelos. - O que você imagina? Eu e você dormindo de conchinha? Eu te fazendo massagem? Eu deixando você me dar tapas na cara e me xingando de cachorro?
- A última seria divertido.
- Gosta de sexo selvagem, Poleman? - Doss riu.
- Olha, eu tenho mais o que fazer do que transar.
- Bom, transar é bom, as vezes. Por essa carga pra fora e você é tão estressada...
- Hale, não somos amigos, para de puxar assunto.
- Você tem que ser babaca assim sempre? Eu to tentando ser legal, a gente vai ficar aqui ate sabe-se lá quando ou amanhã de manhã quando começar a aula.

Betina ficou em silêncio, juntou algumas cadeiras, fazendo uma cama improvisada e se deitou de um jeito que Doss não olhasse por debaixo de sua saia.

***

Pouco mais de 21h e Betina estava inquieta nas quatro cadeiras que não foram feitas para deitar.

- Tá com fome? - a voz de Hale rompeu o silêncio no escuro.
- Sim, o que vai fazer?
- O Chase esconde comida em algum lugar na sala dele.
- Comida ou salgadinhos?
- Salgadinhos mas é uma quantidade boa.
- Tá bom.
- Não vai discutir comigo?
- Eu to com fome, só consigo pensar nisso.
- Bom saber.

Hale desceu da mesa e fez sinal para que Betina o seguisse pela escola, estava fora de cogitação andar sozinho no escuro, mesmo sabendo que com ela se fosse pra acontecer alguma coisa, não ajudaria em nada, só teria mais tempo pra correr. A sala de Chase ficava no segundo andar e quase no final do corredor, Hale sabia que o amigo escondia seus pacotes de guloseimas em algum fundo falso dentro do armário do professor, armário qual ele ajudou a abrir com uma chave de fenda.

- Me ajuda a abrir? - o rapaz perguntou, ganhando apenas um cruzar de braços. - Se eu não conseguir abrir, a gente vai ficar com fome.
- Eu não sei abrir trancas, Doss.
- Não teve infância?
- Nunca precisei abrir algo que eu não tivesse a chave.
- Que chatice. Me empresta pelo menos um grampo ou sei lá.

Betina coçou a cabeça e não achou o objeto, mas lembrou que Moira sempre esquecia grampos ou alfinetes nos bolsos das saias que fazia pra ela, enfiou a mão nos dois bolso juntos e achou dois grampos, entregando para Hale. O rapaz não demorou para abrir, tateou por dentro do armário até sentir algo grande e barulhento, tirou uma sacola amarela de dentro do armário, o trancando em seguida.

- Deve ser isso.
- Tá, abre.

Hale puxou Betina para o lugar melhor iluminado da sala e abriu a sacola, se sentiu como num Caça ao Tesouro, brincadeira que as professoras do primário inventavam quando as crianças terminavam as tarefas. Depois de abrir a sacola e checar que os pacotes de salgadinhos estavam todos cheios, Chase renovava toda sexta a noite, os dois desceram de volta pra sala de reforço, Hale fechou a porta e puxou o armário auxiliar que ficava perto para que ninguém tentasse abrir até o dia seguinte. Betina tentava aflita ligar para a mãe que não atendia o celular e o telefone de casa caía na caixa de mensagens.

- Onde essas duas estão?!
- Sua mãe? - Hale disse sentando com a sacola na mesa do professor.
- Ela e minha avó. Nenhuma das duas atendem o telefone, se eu fosse sequestrada e morta...
- Que ironia, você ta presa na escola com o cara que te sequestrou. - Hale riu pelo nariz.
- Não quero entrar nesse assunto, já ta acontecendo coisa demais. A gente ja pode comer?
- To esperando você acabar de se lastimar.
- Haha.

Os erros que cometemos quando éramos cegosOnde histórias criam vida. Descubra agora