Capítulo 06

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Vale de Mion

A noite se passara tão lentamente que Daniel deveria se lembrar de agradecer à Atéli no dia seguinte. A lua ainda estava alta quando a risada deles se misturou aos sons crepitantes da fogueira e aos dos animais que viviam no Vale de Mion. Estavam aquecidos e embalados em uma das colchas deixadas ali, mais confortáveis do que qualquer uma das camas de latão e colchões nodosos que foram sentenciados a dormir naqueles últimos meses. Mas, principalmente, Rose estava entre seus braços, alinhada com tanto conforto e naturalidade que ele não pode deixar de pensar se aquele sempre fora o lugar dela.

- E então? - Ele perguntou com suavidade, tentando esconder a risada em sua voz ao colocar seu rosto no pescoço delgado, sentindo o aroma doce e natural de sua pele impregnar seus sentidos.

Rose contava uma de suas histórias de infância, relembrando detalhes da época em que o mais extraordinário de seu mundo era o monstro imaginário que vivia no armário do corredor e as histórias encantadas que seu pai lhe contava na hora de dormir. Era um mundo descomplicado e simples, um que ela poderia ser uma princesa ou uma astronauta antes de dormir e ao acordar era apenas ela, sem responsabilidades nem uma guerra caindo sobre si.

- Até hoje eu não faço ideia do que aconteceu! Eu juro que sou inocente. - Rose resmungou, ainda que em um tom de divertimento.

- Princesa, nada em você é inocente. - Ele levantou uma sobrancelha, abrindo um sorrisinho de lado, aquela maldita carinha que fazia Rose querer socar e beijar ao mesmo tempo.

Rose balançou a cabeça, olhando para ele com convicção.

- Eu juro que dessa vez não fui eu. Eu só enchi o balão de tinta, ele explodiu sozinho. Fui uma mera vítima que acabou parecendo um arco-íris.

Daniel sorriu, conseguindo a imaginar coberta de tinta pelas vezes em que a encontrou escorada sobre uma folha de papel com grafite manchando da ponta de seus dedos até a ponta de seu nariz.

- Não, não acredito. Você odiava aquela decoração.

- Odiava mesmo! Era horrenda! E meu pai concordava comigo. Ele... fingiu brigar comigo quando chegou em casa com minha mãe. Tentava tanto não rir que acabou vermelho e bateu com a cara em uma das paredes manchadas... Terminou com a testa azul e o nariz roxo.

Daniel riu, aproveitando a oportunidade para finalmente brincar com aquela mecha de cabelo ondulado que estava roçando em seu rosto, insinuando-se a noite inteira.

- Sua mãe deve ter ficado furiosa.

Rose riu, balançando a cabeça em concordância.

- Naquele dia eu tive certeza de que ela deve ser algum tipo de imortal. Ficou tão vermelha que se misturou com as outras cores da sala. Foi épico. Meu pai não deixou que ela lidasse comigo, disse que cuidaria de tudo. Me fez limpar a sala e jogar as decorações destruídas fora. No dia seguinte chegou em casa com um conjunto novo de tintas e um enorme pano branco para forrar onde eu resolvesse fazer arte.

Daniel sorriu, imaginando uma pequena Rose, menor do que já era, com os enormes olhos dourados brilhando em excitação ao ganhar um conjunto novo de tintas, ansiosa para começar a desenhar o mundo do seu jeitinho.

- Eu ainda não era apaixonada por desenhos na época, não ligava tanto para artes, era só um passatempo..., Mas meu pai ter pensado que eu gostaria de novas tintas mesmo depois de ter destruído o tapete preferido de mamãe... - Ela parou de falar, como se a lembrança adquirisse uma individualidade tão palpável que falar sobre o que ela transmitia não era possível ou preciso.

- Sente saudades? - Daniel perguntou, mesmo já sabendo da resposta.

O suspiro de Rose não foi cansado ou impaciente, apenas conformado. Como se reconhecesse que aquela perda, aquela pessoa que já não passava de uma mera lembrança desbotada, não desejaria mais lágrimas ou ressentimentos, apenas ser recordada como um grande e importante marco em sua história, um amor que estava ali, existente e dormente.

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