Capítulo 17

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Daniel não se lembrava do dia em que passou a se sentir menos como um objeto e mais como um ser humano. Ele não tinha memórias boas de sua infância e muitas vezes acordava pigando suor no meio da noite, ofegante e com o coração acelerado por reviver um de seus traumas do passado. Infelizmente foi muito cedo que ele havia descoberto que monstros não vivem debaixo da cama ou saem de dentro dos armários; cedo demais ele deixou de crer no homem do saco ou na cuca; cedo demais ele descobriu que o pior monstro é aquele que as pessoas escondem em seus íntimos. Monstros cruéis e sanguinários, monstros sem remorso ou temor.

Daniel era uma criança quando sua vida se tornou um longo filme de terror hiper-realista. Talvez esse fosse o motivo para não sentir receio em matar ou culpa quando seus atos afetam alguém. Ele não se considerava um homem cruel, nem mesmo impiedoso, ainda que muitos o temessem. Conhecia seus limites e sabia que não era preciso muito para o fazer perder o controle sobre si mesmo. Matar não era um passatempo, nem mesmo uma ocorrência extraordinária. A morte, na vida de Daniel, era um fato há muito aceitado.

O Sol mal se estabelecera em seu ápice quando as cinco motos pararam no que restava da entrada da Toca do Lobo, a casa destruída da alcateia Lua Negra.

O local, apesar de ser chamado toca, nada tinha de parecido com uma. Assemelhava-se com um extenso condomínio de luxo com praças e árvores para todos os lados, as ruas eram feitas de paralelepípedos e já havia sido palco de risos, gritos e liberdade. Poucas alcateias prosperam no meio urbano, a poluição, tanto ambiental quanto sonora, tornam difíceis a adaptação, principalmente em um local com clima quente como o litoral brasileiro. Lua Negra tinha prosperado a ponto de se tornar uma das maiores alcateias do mundo e a maior do Brasil, até ser quase que completamente dizimada.

— Os Buscadores pagarão pelo que fizeram.

Daniel ouviu Rosalind dizer a poucos metros atrás de si, agachada e com um brinquedo de criança entre suas mãos, meio carcomido pelas presas infantis dos filhotes e com sangue ressecado em uma das pontas.

— Não posso. Não consigo ficar aqui. — Cassie disse, forçando-se ao falar enquanto lágrimas escorriam por seu rosto arredondado e ela estava mais pálida do que um enfermo em seu leito de morte.

— Ethan gostaria que descobríssemos o que aconteceu.

Tom disse, adiantando-se até ela e passando um braço por sua cintura para o caso dela cair, contudo, Cassie balançou a cabeça em negativa assertivamente, fechando os olhos e tentando respirar o mais fundo que conseguia.

— Não tem nada haver com Ethan. — Ela gemeu, colocando a cabeça entre as mãos. — Vocês não podem sentir?

— Ham... Sentir o quê, Cassie? — Maria perguntou, preocupada e já sacando sua adaga do cinto.

— Eu posso. — A voz soou sombria, diferente do tom geralmente leve e sarcástico. Rose ainda segurava o brinquedo, mas havia se afastado metros e metros, aprofundando-se na rua principal da Toca do Lobo. — Eu sinto. Escorrendo pelo chão e pulsando como se ainda fosse fresco. Sinto a dor, o ódio e o medo.

Daniel retirou uma flecha de sua aljava e o arco de suas costas, posicionando a arma enquanto se aproximava de Rose. Os olhos dela estavam vidrados, assistindo algo que apenas ela podia ver. O rosto estava impassível, mas a mão estava fechada firmemente contra o cabo de Justitia.

— O quê? O que estão sentindo?

Cassie balançou a cabeça, olhando com pesar para Tom.

— É diferente. Não sinto o que ela sente. Eu sinto a magia, sinto os feitiços que foram feitos e os sinto agindo. Não existe mais vida nesse lugar, não do tipo que possa ser amigável. Magia de Sangue está impregnada nas pedras e no ar, eu a sinto rastejando por minha pele, cercando minha magia e sibilando contra minha mente.

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