Uma em dez milhões

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— Né, Hoseok, eu aceito e fico muito grato com a oferta da divindade da fortuna, mas e você? — Jimin se sentou pra conversar com o fantasma do sorriso depois de ler a carta do seu velho amigo, lhe oferecendo essa ajuda direta através de um familiar. — Não se obrigue a ficar se não quiser.

— Ah, na verdade eu gostei muito da ideia de ficar um tempo sem o mestre da fortuna no meu pé. — Hoseok sorriu alegremente. — Estou feliz por você me aceitar, mas... — Então olhou de canto de olho pro demônio raposa, sentado ao seu lado, sério e de braços cruzados. — Acho que o milorde não concorda.

— Pare de me chamar assim! — Taehyung ralhou com ele, tirando de Jimin um sorrisinho discreto.

— Tudo bem, tudo bem, ele vai se acostumar logo. — Esticou o braço para afagar-lhe a cabeça entre as orelhas. — Não é, Taetae?

— Uh... — A expressão ameaçadora no seu rosto aliviou num instante, e ele abaixou a cabeça pra receber o carinho, completamente submisso. — Uhm.

"Ah?!?", Hoseok franziu uma sobrancelha, completamente confuso: algo de errado definitivamente não estava certo.

— Bem, agora... — o Deus se levantou, dando batidinhas nas vestes. — Eu preciso ir a um lugar...vocês querem me acompanhar?

Hoseok e Taehyung trocaram um olhar breve, então também se levantaram: logo estavam descendo o monte, rumo à cidade.

— Psiu... — o fantasma chamou, por trás do seu leque branco. — Lorde da Calamidade.

— O que é? — Taehyung continuou andando a passos curtos, atrás da divindade da boa sorte.

— Am... o senhor... e a divindade... o que vocês... têm?

— O que quer dizer?

— É porque, milorde, o senhor é o um rei do submundo... estar servindo um Deus é extremamente...am...inesperado? — Abanou o leque. — Pra dizer o mínimo.

— Tch, eu não sou rei porra nenhuma. — Taehyung afastou a franja dos olhos num movemento de cabeça: os cabelos prateados pareciam lhe incomodar um pouco naquela forma humana, por serem mais lisos que os da sua forma pura. — Nunca liguei pra isso, esses títulos inúteis que ficam me dando.

— Mas isso não é o tipo de coisa que se pode simplesmente negar. — Hoseok riu, achando engraçado. — Quem não dá testemunho de si mesmo acaba ganhando fama pelos seus atos.

— Pouco me importa. — Taehyung deu de ombros, e Hoseok escondeu um sorriso por trás do leque. Bem típico de um demônio como ele aquela atitude, pra falar a verdade: não deveria se importar tanto, se aquilo era só mais um capricho de um espírito tão singular como o das Nove Caudas do Desastre. De qualquer forma, ele ficaria de olho, como seu mestre lhe instruiu: mesmo familiar como ele, Taehyung ainda era um demônio dos mais perigosos, e Jimin um deus ingênuo por natureza.

— Chegamos. — a divindade olhou para os seus acompanhantes por trás do ombro, assim que chegaram à frente de um hospital simples. — Se comportem, né?

Os dois concordaram com a cabeça e o seguiram ao interior da casa, até um dos vários quartos, onde uma senhora de bastante idade estava deitada, adormecida sobre uma maca e rodeada de aparelhos. Jimin chegou perto, cuidadoso, fechando os olhos e respirando lentamente.

— O-o quê... — Hoseok se aproximou também — O que ela tem?

— Alzheimer. — Jimin respondeu, abrindo os olhos. — O que me trouxe até ela foi uma oração fervorosa e sincera. — Ele tocou a testa cheia de rugas com as pontas dos dedos, carinhosamente.

— Mas é a doença do esquecimento. — Hoseok fechou o leque. — Até os deuses da cura têm dificuldades com ela. É impossível reverter, não?

— Às vezes, Hoseok... — Jimin sorriu. — O impossível é só questão de opinião.

Hoseok piscou espasmodicamente, vendo Jimin juntar as mãos e apertar os olhos por um breve instante.

— Está feito. — Então ele disse, calmamente. — Vamos indo, né...ela logo vai acordar e os parentes vão ser as primeiras pessoas que vai querer ver.

— Então... — Hoseok o seguiu, alcançando o lugar ao seu lado enquanto saíam do quarto. — Ela realmente... está curada?

— Eu não diria "curada". — Jimin riu, divertido. — Ela só teve sorte.

— Ah?!... — Hoseok procurou ajuda em Taehyung, vendo com certo espanto um sorriso discreto no rosto sério.

— Jimin pode mudar o rumo da linha temporal como bem entender. — Ele lhe explicou. — Se pros homens a probabilidade é aleatória, pro Jimin não passa de uma escolha: ele enxerga todas as possibilidades, e aponta pra uma; se é uma em mil, ou uma em dez mil, pra ele não faz diferença.

— Eh?! Sério mesmo? — o fantasma voltou a abrir o leque, pensando. — Não fazia ideia de que sorte era um conceito tão complicado.

— Na verdade é bem simples. — Jimin falou. — O Taehyung não está errado, mas pessoas que sabem fazer o que eu faço não é raro.

— Sério?! Mas então... — Hoseok continuou perguntando, extremamente interessado. A divindade da fortuna alertou na carta sobre seu familiar ser extremamente curioso, e Jimin gostou daquilo, apesar de que...bem, ele queria um tempo pra conversar a sós com Taehyung, e só o conseguiu muitas horas depois que chegaram no templo, quando o fantasma do sorriso sentiu o peso do cansaço na sua forma humana.

— Taehyung, nós temos cobertores? — Encontrou seu familiar no pátio, com as mangas da túnica amarradas junto aos ombros, para que pudesse mover melhor os braços enquanto trabalhava em vigas de madeira. — O Hoseok já dormiu, e vai fazer frio essa noite.

— Por isso ele está tão calado? — Passou as costas das mãos na testa suada. — No porão tem bastante coisa: já deu uma olhada? É tudo bem velho, mas...

— Mas serve por enquanto. — Jimin se aproximou, limpando-lhe o rosto com a manga da túnica, delicado e cuidadoso. — Muito obrigado, né, Taehyung, por tudo...

— Uhm. — Segurou a mão do Deus na sua, deitando o rosto nela: ele aceitou o toque, mas recolheu a mão assim que ele virou o rosto e antes que pudesse tocar com os lábios nela. — O que... — Engoliu em seco. — O que foi?

— Né... TaeTae... — Ele encolheu a mão junto ao peito, de olhar baixo. — Eu... me sinto culpado por não me lembrar de você... de sequer saber porque você nutre tanto carinho por mim.

— Não posso ter carinho por você? — Perguntou, sentindo o sangue gelar nas veias. Conseguia prever o que viria, mas não queria acreditar.

— Pode. — Jimin sorriu, terno. — Mas você deveria estar um pouco bravo comigo, sabe? Eu... — "...sei o quão é ruim ser esquecido." — Eu quero me lembrar de você, então até lá, por favor... — Pegou-lhe as mãos, num gesto de pedido. — Sem toques íntimos entre nós dois, tudo bem?

Taehyung já tinha morrido, se tornou um fantasma, e depois de muitos tempos idos, um ser demoníaco, mas em todo aquele longo período aquela foi a primeira e única vez que ele desejou morrer de novo.       

O'Sake - VminOnde histórias criam vida. Descubra agora