Capítulo 1 - Eu fiz algo sem saber?

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A pergunta ainda estava engasgada em seu peito, ainda que há pouco tivesse sido pronunciada em voz alta, no ápice de seu desespero ao constatar o estado alterado em que Yaman estava. Por algum tempo, Seher desejou que seus toques tivessem o poder de acalmá-lo como antes, mas isso já não era possível... Mesmo que parecesse ter transcorrido uma eternidade desde que o confrontara, a verdade é que se muito havia se passado algumas horas. Eu fiz algo sem saber?, questionou-o na ocasião, o que a fez lembrar-se do período do dossiê no início do casamento. Naquela época, muitas vezes tinha feito essa mesma pergunta sem obter nenhuma resposta.

Os olhos ardiam por causa das lágrimas que teimavam em cair sem que Seher pudesse contê-las. Ao contrário do que tinha acreditado nas últimas semanas, seu relacionamento não parecia mais tão inabalável. Não duvidava do amor de Yaman, mas agora suspeitava que amar nem sempre era o bastante, a julgar por tudo o que tinham passado até então. Até o início do dia, pensava que nunca mais teria que enfrentar a angústia de perceber Yaman ferido ou fechado em si mesmo, inacessível para ela, mas não foi o que aconteceu há pouco. O pior nessas ocasiões era a sensação de estar em um terreno desconhecido, muito distante daquele solo firme que vinha trilhando com o marido.

Analisando tanto quanto era possível no momento, a impressão é que os dois nunca eram suficientes um para o outro, por mais que tentassem, por mais que buscassem encontrar um ponto de paz e equilíbrio.

Rememorou tudo o que passou desde que conheceu Yaman e sentiu o coração afundar ainda mais dentro do peito, como uma âncora pesada sufocando-a e arrastando-a para as profundezas de um mar turbulento. Lembrou-se dos momentos que vivenciaram desde o primeiro confronto, as vezes em que o corpo de um foi escudo para o outro e até mesmo as ocasiões em que as palavras e ações de um foram adagas afiadas no peito do outro... Mas sua memória demorou-se muito mais nas situações em que foram refúgio. Pensou nas pequenas intimidades que pouco a pouco concediam um ao outro, mesmo antes que se dessem conta de que se amavam: os primeiros olhares, ainda arredios; os toques suaves e reticentes que lentamente se transformaram em carícias; a confiança que parecia ser construída conforme venciam os obstáculos, mas que vez por outra parecia ruir diante das tempestades.

Antes mesmo que pudesse nomear o sentimento, já tinha se apaixonado por muitas coisas em Yaman: pela fortaleza que ele representava, pela confiança e fé que ele transmitia com sua voz, pelo abrigo que seu corpo simbolizava, pela convicção de que ele queimaria o mundo para que nem ela nem Yusuf sofressem e por tantas outras coisas que não poderia enumerar.

Passaram por muitos problemas, erraram muitas vezes, mas depois de tudo o que vivenciaram, especialmente após Yaman confessar ter matado Kevser e posteriormente ser inocentado, Seher depositou sua confiança uma vez mais nele, e sabia que ele também acreditara ter feito o mesmo em relação a ela. Afinal de contas, agora tinham experimentado o que havia de mais sombrio um no outro. Mas nenhum dos dois podia controlar totalmente esse tipo de coisa. Talvez não fosse propriamente uma questão de querer, mas não podiam escapar de suas respectivas naturezas...

Ao mesmo tempo que pensava nisso, sentiu se formar um bolo em seu estômago, a ansiedade consumindo-a enquanto uma voz se infiltrava em seu inconsciente, questionando-a sobre que parcela de culpa ela teria em tudo o que acontecera. Tentou afastar esse pensamento... Fosse como fosse, o que mais doía era pensar que todas as suas atitudes nos últimos dias tinham sido tomadas com a crença de que agora, mais do que nunca, poderia ficar confortável em estar com ele, que se entenderiam mesmo sem se falarem. Nesse instante, pensou em quão perto estivera de entregar-se a ele da única forma que ainda não havia feito. Inclusive, até poucos dias atrás planejava organizar uma surpresa para que ambos pudessem desfrutar de sua dança inacabada. Mas agora, mesmo que tentasse, não evitava pensar: será que em algum momento tinha dado margens para que a desconfiança se instalasse outra vez no coração dele? Foram seus gestos, suas palavras? Estivera ausente em algum momento? Não conseguia entender...

Estava desnorteada. Depois da partida de Kevser, quando esta se casou com o irmão de Yaman, Seher tinha se tornado um tanto solitária, embora com frequência estivesse cercada de pessoas queridas. Mas em momentos como esse percebia a falta que fazia ter uma confidente. Como queria poder compartilhar suas incertezas e inseguranças com a irmã, abrir seu coração a uma amiga querida ou dividir suas angústias com mãe Nadire, que era sua referência como figura materna... Mas nenhuma dessas possibilidades estavam agora ao seu alcance. Para piorar sua angústia, antes de se casar não sabia muito sobre ser esposa. Sabia ser filha, amiga, irmã, tia e até um pouco mãe, tendo aprendido este último com tudo o que passara para manter-se ao lado de Yusuf e garantir que o sobrinho crescesse feliz e saudável. Mas sobre ser esposa, tinha muito mais dúvidas do que certezas, e provavelmente daí decorria grande parte de sua insegurança. Por outro lado, por mais que não fosse uma mulher experiente, sabia que seu casamento não resistiria muito mais a essas constantes provações, ao menos não nas condições em que estava.

Não queria perder Yaman, mas nesse momento lhe sobreveio a imagem da cena ocorrida um pouco antes, do aperto dele em seus pulsos, o olhar gélido e a expressão ora vazia, ora enfurecida. Não, não suportaria reviver dias como aqueles em que Yaman acreditara que ela o enganava com Selim. Não agora que havia provado de seus beijos, de seu abraço, que ouvira suas juras de amor, que trocaram confidências e que selaram promessas. Não agora que conhecia um Yaman muito diferente daquele dos primeiros dias...

Esse pensamento selou a decisão de Seher, que enxugou as lágrimas e olhou ao seu redor. O quarto permanecia numa aparente normalidade, mas ela não se enganaria: não podiam mais ignorar todos os problemas pelos quais tinham passado. Algumas vezes tentaram passar por cima de tudo, mas isso obviamente não bastaria nunca, pois volta e meia, por razões variadas, os problemas retornavam. Como poderia viver nessa inconstância, sob a sombra da incerteza? Fora criada numa redoma e já dissera isso a Yaman. Por muito tempo, não havia conhecido nada além do amor, da proteção e da confiança, portanto, não sabia viver à espreita de traições ou batalhas. O mais próximo que chegou disso foi no período em que acreditava que Yaman assassinara sua irmã, e ainda assim, esteve à beira da loucura no período.

Entendia que Yaman era um sobrevivente de uma vida completamente diferente, em que tinha que se manter constantemente alerta, em uma luta incessante, muitas vezes com os outros, outras vezes muito mais consigo mesmo. Seu coração se quebrava cada vez que pensava nas dores enfrentadas pelo menino Yaman, dores que o tornaram que ele era, e das quais ele evidentemente não estava completamente curado. Muitas vezes quis ser capaz de tomar parte dessas dores para si apenas para ter o prazer do riso descontraído do esposo... queria que seus beijos afastassem por completo os fantasmas que o perseguiam apenas para que pudesse desfrutar da companhia dele, sem o peso do passado nos ombros dele.

Mas isso também não estava sob seu controle. Nem sob o de Yaman, agora entendia. Nesse mesmo instante, por exemplo, ele provavelmente estava atirando flechas no quintal e por enquanto ambos não não pareciam capazes de se encarar depois das palavras que trocaram, muito menos de curar as dores um do outro.

Aproveitando a ausência dele no quarto, Seher foi até o depósito, procurou a pequena e surrada mala que trouxera na primeira vez que adentrou a mansão e organizou alguns poucos pertences, atormentada pelas próprias lembranças. Sabia que não poderia cortar todos os laços com ele, considerando que entre ambos sempre haveria Yusuf, e sinceramente nem sabia até que ponto conseguiria manter distância, mas por sua própria sanidade tinha de partir. Iria não porque não o amava, mas justamente porque o amava demais para passar por tudo o que passara em outras épocas.

Além disso, não podia esquecer que tinha que zelar por Yusuf, cada vez mais crescido, e que não demoraria a ser mais uma vez afetado pelas ações de ambos. Em seguida, com pesar se aproximou da mesa de cabeceira da cama e depositou cuidadosamente a aliança ao lado da foto de casamento, os olhos mais uma vez marejados. Fitou mais uma vez a cama de casal, recordando as ocasiões em que se confortaram um no outro. Então, foi até o quarto de Yusuf e observou o pequeno dormindo tranquilamente, completamente alheio a tudo o que ocorrera. Sabia que o sobrinho sofreria com a partida, mas desta vez faria diferente.

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