Capítulo 5 - Não é tarde para fazer os reparos necessários

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Sem demora saíram em direção àquela que seria a residência deles pelos próximos meses. No carro não trocaram muitas palavras, mas desfrutaram em silêncio da presença um do outro. Seher estava às voltas com mais lembranças, recordando da ocasião em que saíram em lua de mel. Mas, diferente daquela vez, o caminho de agora parecia árido. Para ela, era quase como se trilhasse um caminho inverso ao daquela ocasião. 

De vez em quando trocavam olhares furtivos e Seher começou a perceber que não seria tão fácil assim se manter distante de Yaman. Como faria isso se cada partícula do seu corpo clamava por ele? Queria perguntar muitas coisas, saber dos dias dele. Por muito tempo Yaman fora extremamente fechado, quase que inacessível, mas ultimamente tinham se acostumado a compartilhar tantas coisas e ela sentia muita falta disso. 

Sufocando no espaço apertado do carro, abriu a janela e deixou a brisa suave balançar seus cabelos enquanto estendia uma das mãos para fora, apreciando o frescor do ambiente e tentando aplacar o turbilhão de sentimentos.

Yaman não estava em melhor estado. Vendo os cabelos dançando ao sabor do vento, queria correr os dedos entre os fios sedosos, talvez mais até do que antes. Ansiava pela tranquilidade de voltarem a conversar não apenas por palavras, mas também pelos olhares cúmplices e por tantos gestos silenciosos. Entretanto, respeitaria o espaço da esposa. Tentaria não impor demasiadamente a própria presença, mesmo que não pretendesse se afastar, pois percebia que algo mudara entre ambos. Desde o último embate que tiveram, havia nela uma estranheza que o assombrava, indecifrável. Seher parecia arredia, como não estivera em nenhuma circunstância, nem mesmo em outros tempos sombrios. Mas aos poucos esperava fazer com que ela novamente estivesse à vontade com sua presença.

A única vez que se falaram no percurso foi quando ela perguntou sobre Zyah. Yaman explicou que o deixara sob os cuidados de Cenger, já que não confiava em Canan. Cenger, aliás, era o único da mansão que sabia para onde os três iriam. Para o restante, Yaman sequer cogitou se justificar. Havia percebido, enquanto se preparava para a partida, que Canan o cercava, usando subterfúgios variados para tentar descobrir o que ele planejava, mas preferiu deixar a curiosidade corroê-la. 

Algum tempo depois, chegaram à propriedade. Antes mesmo de descer do carro, Seher estranhou o estado da residência, que destoava da situação do terreno ao redor: não tinha o viço que aparentava na fotografia que Yaman havia mostrado a ela no momento em que escolheram para onde iriam. Era, evidentemente, a mesma casa, mas, conforme se aproximou da porta de entrada, notou que precisava de uma reforma. Olhou-o, num misto de curiosidade e espanto, sem entender. A casa não estava sendo cuidada?

Aguardou enquanto Yaman abria a porta e depois o seguiu enquanto ele avançava no interior da residência. Estavam apenas os dois, pelo que percebia. Sem entender o que estava acontecendo ali, Seher o encarou com uma interrogação no olhar.

- Esqueci de te dizer- ele comentou inocentemente, aparentando naturalidade - Há algum tempo não venho aqui e só agora me dei conta de que essa casa não tem tido os cuidados adequados. Estive ocupado com outras coisas, mas não é tarde para fazer os reparos necessários. Imagino que olhando agora, provavelmente parece um trabalho árduo, mas depois que finalizarmos, valerá a pena. Você verá que não haverá nem sombra do descuido... - nesse ponto, Yaman praticamente sussurrava, tendo se aproximado dela sem que percebessem. 

Seher o encarou, questionando-se se ele ainda estava falando apenas da casa. Por um instante, se perderam um no outro, mas Seher logo caiu em si e se afastou, pigarreando.

- Sim, é verdade. Outras vezes, precisamos aceitar que não vale a pena investir em ruínas e que não importa o quanto as reforme ou as ajuste, se o problema estiver no fundamento, na estrutura, talvez seja melhor iniciar outra construção antes que a antiga caia sobre nossas cabeças - ela retrucou, com toda certeza não se referindo à casa, e soube que ele entendeu quando o viu apertar os olhos e assentir, embora claramente discordasse dela. 

Em seguida, ele se afastou e começou a carregar as caixas e as malas para dentro de casa. Não era tanta coisa, tinham trazido inicialmente apenas o essencial e depois se ajeitariam.

Enquanto ia até o carro, Yaman não evitou um meio riso. Sabia perfeitamente das condições em que a propriedade como um todo estava, inclusive ele era o responsável por isso, mas optou por deixar boa parte dos ajustes para quando estivesse com Seher. Além disso, queria que ela fizesse parte da reconstrução do lugar ao mesmo tempo que mostraria a ela que era possível restaurarem a confiança e a relação. Assim como a frágil residência se fortaleceria pelo esforço de ambos, o casamento se consolidaria.

Não era uma casa tão grande, Seher constatou enquanto explorava o local. Tinha apenas três quartos, mas um não parecia em condições de uso no momento, pois estava entulhado. A sala poderia se tornar um espaço aconchegante, observou, enquanto planejava que mudanças seriam necessárias. Ainda conversaria com Yaman, é claro, mas acreditava que ele não se oporia ao que ela pretendia fazer. Na mansão, nunca teve vontade de alterar nada, pois desde que ingressara naquele espaço tudo sempre permanecia do mesmo jeito, provavelmente por influência de Ikbal, que era, de certa forma, a senhora da casa. Mas não se ressentia disso, já que não se sentia à vontade para sugerir mudanças na organização da casa.

Ali, por outro lado, embora tudo estivesse praticamente em ruínas, tamanho era o descuido, queria arregaçar as mangas e transformar, mesmo que por pouco tempo, o espaço em um lar. Para Yusuf, ela repetiu mentalmente.Enquanto se movimentava pela casa, não evitou lembrar da época em que estiveram na casa alugada, quando tentavam driblar o Serviço Social para conseguir a guarda de Yusuf. Sentia falta daqueles dias, mas não tinha tempo a perder. Depois que conheceu todo o ambiente, começou a estabelecer prioridades. Havia muito a ser feito e não concluiriam o serviço naquele dia, mas fariam o necessário para que passassem aquela noite, principalmente porque Yusuf não tardaria a chegar.

Nesse meio tempo, Yaman já havia colocado em um canto da sala tudo o que trouxeram. Sem necessidade de palavras, os dois se movimentavam sincronizados, os corpos se entendendo perfeitamente enquanto trabalhavam de forma incessante. O único momento em dialogaram foi quando ele disse que, se necessário, traria alguém para ajudar nos serviços que teriam que fazer, mas Seher recusou a oferta. Nesse momento, ela pensou em perguntar mais a respeito daquela casa e das pessoas que supostamente teriam cuidado de tudo, mas desistiu.

Depois disso, primeiro passo foi limpar e organizar minimamente a cozinha, afinal, precisariam fazer refeições ainda naquele dia. Enquanto se ocupava da cozinha, Seher ouvia os passos do marido pela casa, fazendo pequenos reparos, e de repente se transportou para a casa de tia Guller, lembrando-se de como chegaram lá e do que viveram naquele lugar: o trabalho em parceria, ele ensinando-a a pintar; a descoberta de facetas do marido até então desconhecidas para ela; a troca de alianças e as promessas murmuradas. Olhou para o próprio dedo, sentindo o vazio no lugar onde antes estava sua aliança, recordando a própria promessa de jamais voltar a tirá-la. Suspirou ao lembrar de como dormiram abraçados na cama estreita e estremeceu ao pensar nos beijos trocados, um calor se espalhando lentamente pelo corpo.

Tenha dignidade, Seher! Não está nem há um dia inteiro ao lado dele..., recriminou-se, o olhar procurando o marido. Lá estava ele, constatou observando-o trabalhar distraído. Achava impressionante a maneira como Yaman se movimentava com naturalidade onde quer que andasse, fosse em espaços luxuosos ou em locais mais simples. Parecia uma fortaleza inabalável. Mal sabia ela que Yaman também estava preso nas mesmas memórias e, assim como ela, queimava de saudades, de ansiedade e de vontade de estar junto. O imã e o ferro, como ele dissera quando estiveram na casa de tia Guller.

Assim transcorreu boa parte do dia. Por pior que a casa tivesse parecido ao chegarem e por mais que restasse muito a ser feito, já não parecia tão terrível quanto a primeira impressão. Já estava entardecendo quando Seher ouviu o barulho da chegada de um veículo. Era Nedim trazendo Yusuf, conforme o combinado. Ao entrar na casa, o pequeno maravilhou-se com a possibilidade de estar junto aos tios outra vez na mesma casa e correu para os braços de Yaman. Aventureiro, planejou explorar não apenas a casa, mas os arredores também, o que fez Seher se dar conta de que não tinha observado os detalhes do espaço externo da propriedade, mas faria isso outro dia. Ainda restava, dentre as coisas planejadas para aquele dia, organizar os quartos.

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