PRÓLOGO

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• Música Tema de " Todos Menos Nós" :

  No pé da cama... lá estava ele me encarando, sua boca escancarada com um líquido negro pingando de dentro para fora, longo pescoço torto e entranhas saltando de uma abertura em sua barriga.

   Seus olhos vazios me observaram a noite toda, alimentando-se de cada gota do meu vazio, pois eu quase não tinha sonhos para compartilhar.

   A mão direita estava erguida para agarrar meu calcanhar e me levar para bem longe dali, para uma escuridão sem fim... e eu estaria perdida para sempre...

  Talvez finalmente em paz.

  Foi o melhor desenho que já fiz, tanto que me assustei ao acordar.

  — Nina!

  Gemi ainda com os olhos pesados e tentei abafar a voz com um dos travesseiros contra minha cabeça.

  — Você vai se atrasar! Não vai querer que eu suba aí e te arranque dessa cama, vai?

  Apertei o travesseiro mais um pouco contra as minhas orelhas.

  Ela iria desistir.

  — NINA!

  Eu desisti.

  Sentei na cama tentando juntar todas as minhas forças. E como eu conseguiria levantar com a porcaria de clima que aquela cidadezinha miserável sempre oferecia?

   Chuva e muito frio.

   A minha vontade era de ficar na cama o dia todo. Por vários motivos, na verdade.

  — Estou descendo! — falei alto o suficiente para que Leda me escutasse do pé da escada, que era onde eu tinha certeza que ela estava, pronta para subir.

  Encarei o meu desenho de monstro apoiado no cavalete de frente para mim, com meus cabelos assanhados caindo nos olhos, atrapalhando a visão.
 
  — Pelo jeito você também odeia as manhãs daqui. Está com uma cara péssima — falei apreciando cada traço de lápis. — Acho que vou te chamar de "A Agonia do Amanhecer"... O que acha? — entortei meu pescoço como o dele.
 
   "Agonia" continuou me encarando com toda sua tormenta encarnada.

  — Eu sei... é tudo uma droga, não é? — Levantei com bastante esforço e comecei a me arrumar.

          ═───────◇───────═
 
 
    A mesa do café da manhã estava impecável, como todos os dias. Leda fazia decorações com frutas e pães muito atraentes, sempre na intenção de me fazer comer além da conta.

    — Ah, minha nossa! Você vai se atrasar! Vamos, sente aqui e tome uma bela xícara de café. Pelas olheiras em seus olhos, vejo que vai precisar, e muito!
 
   Eu havia passado a noite toda desenhando, não queria perder a inspiração no dia seguinte. Claro que não diria aquilo para Leda, ela me daria um sermão.
 
   — Está bem. — Fingi naturalidade sentando à mesa, enquanto Leda me encarava com os olhos semicerrados. — Mas será apenas um café. Levarei uma maçã pra comer no caminho.
 
  — Como assim? — Sua expressão passou de desconfiança para desespero. — Você vai acabar ficando fraca desse jeito! Olha só como está magrinha! — Ela mediu a finura do meu braço direito com a ponta dos dedos indicador e polegar, enquanto eu tentava fazê-la me largar.
 
   — Você mesma disse, eu estou atrasada. Preferi dormir mais um pouco do que comer, nada demais. — Expliquei despreocupadamente, beliscando um pedaço de bacon.
 
  — O Dr. Sullivan vai acabar falando mal de mim para a sua mãe e aí sim ela vai me demitir! — Leda bateu na ponta da mesa, seus traços demonstrando uma grande frustração.
 
  — O quê? Nunca! — Quase me engasguei com o café que comecei a bebericar ao ouvir aquilo. Não conseguia imaginar minha vida sem Leda. — Eu jamais deixaria isso acontecer. Jamais. Falando nisso... cadê ela?
 
  — Perdão?
 
  — Minha mãe. Pedi a ela que me levasse para a escola hoje, como uma... sabe? "Tentativa"... já que a nossa relação... não é a das melhores, né? — Suspirei.
 
  Leda olhou para baixo comprimindo seus lábios carnudos. A expressão preocupada.
 
  — Leda? Ela ainda está lá em cima se arrumando, não é? — Me virei na cadeira para encará-la melhor.
 
  — Ouça, querida... — a robusta senhora finalmente controlou o nervosismo. — Ela estava com mais pressa do que o normal... acordou até mais cedo do que eu e...
 
  — Ah! Claro! Por que eu ainda tento? — Ri. — O "normal" dela é sempre estar com pressa, Leda... — suspirei, virando-me novamente para a mesa e encarando minhas pernas. — Eu sou uma idiota... por que acreditei que faríamos mesmo isso? — Peguei uma maçã e alcancei as alças da minha mochila no chão, pronta para sair batendo os pés.
 
  — Não gosto quando você se coloca para baixo, Nina! Você... é uma menina maravilhosa! E é por isso que eu tenho certeza que sua mãe deve estar lamentando muito não poder estar com você agora.
 
  — Lamenta nada — dei uma risada sombria. — Bom... Carl já está pronto? — Perguntei já de pé.
 
  — Só esperando por você lá embaixo.
 
  — Certo... então... — verifiquei se não havia esquecido nada. — Até mais tarde, Leda. — Dei as costas.
 
  Quando eu estava prestes a chegar na porta, Leda me alcançou:
 
  — Espere! Leve um sanduíche pra viagem também, está uma delícia, fiz do jeitinho que você gosta — ela já foi abrindo minha mochila.
 
  — Ok, agora... por favor? — fiz menção para ela me deixar sair pela porta.
 
  — Está bem, está bem. Mas... só mais esses biscoitinhos que assei. Veja, é em formato de coração!
 
  — Escola... — continuei tentando sair, enquanto ela me segurava pela mochila.
 
   — Ah! E um beijo de despedida! — Logo, meu rosto estava sendo bombardeado por beijos exagerados e maternais.
 
  — Leda! Para! Tá bom... já entendi... também vou sentir sua falta... — tentei lutar, mas depois estava rindo e esqueci por um momento a falta de consideração da minha mãe.

Todos, Menos NósOnde histórias criam vida. Descubra agora